Monday, December 31, 2012

O Dia D - Uma visão de Abbott Joseph Liebling


O Dia D
Texto publicado pela Folha de São Paulo no Caderno Mais!, no domingo, 11 de outubro de 1998.

O texto de que o Mais! reproduz  um trecho nesta e na próxima página foi escrito pelo jornalista norte-americano Abbott Joseph Liebling (1904-1963) para a revista “The New Yorker” na década de 40 – posteriormente, ele foi incluído no livro “Mollie & Other War Pieces” (Mollie & Outros Artigos de Guerra, Editora Shocken).
Liebling participou do desembarque das tropas aliadas na Normandia, França, no Dia D (6 de junho de 1944). Percebendo que presenciava uma das mais importantes operações militares da história, optou por escrever uma reportagem seca e direta, sem floreios de estilo ou tentativas de reflexão. Algumas das cenas iniciais de “O Resgato do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, são claramente inspiradas no texto do jornalista.

Por Abbott Joseph Liebling
Tradução de Clara Alain





            Em tempos de paz ou de guerra a travessia do Canal da Mancha de navio sempre começa com os passageiros no mesmo estado de ânimo: todos esperando que não tenham enjoo. Trata-se, de modo geral, de um fator de moral favorável para a véspera de uma invasão. Um soldado não pode se angustiar com possíveis ataques da Luftwaffe (Força Aérea Alemã) ou das lanchas torpedeiras quando está preocupado consigo mesmo, e o temor difuso de topar com armas secretas na outra margem do canal é contrabalançado pelo urgente desejo de pôr os pés sobre essa outra margem.
            Poucos dos 140 passageiros do LCI-(L) (Landing Craft Infantry – Large – Embarcação de Desembarque de Infantaria – Grande), na qual eu estava, tiveram  enjoo forte na noite antes do Dia D, mas todos estavam ocupados pensando nisso. Os quatro oficiais e 29 homens da Guarda Costeira dos Estados Unidos que compunham a tripulação nem sequer estavam enjoados, mas tinham trabalho a fazer, o que funcionava igualmente bem.
            O mal tempo sobre o qual os jornais falaram tanto depois do Dia D e que, de fato, atrapalhou o desembarque, não era o tipo que faz balançar transatlânticos ou mesmo navios de travessia do Canal da Mancha; era apenas um pouco mau demais para os tipos menores de embarcações de desembarque que usávamos.
            Uma LCI(L), como seu próprio nome indica, não é uma das menores, mas é bastante pequena, e, a bordo de nossa embarcação de 300 toneladas e fundo chato, o canal não parecia estar especialmente ruim naquela noite. O mar ficou agitado durante uma hora depois de deixarmos o porto, mas depois disso a viagem foi melhor do que eu previra. As LCTs (Landing Craft Tank, Embarcação de Desembarque – Tanques), construídas como cubas abertas com 30m de comprimento, para transportar veículos blindados, tiveram dificuldades muito maiores, especialmente porque, por serem lentas, tiveram que partir horas antes de nós. As LCM (Landing Craft – Mechanized, Embarcação de Desembarque – Mecanizados), de 15m e as LCVPs (Landing Craft – Vehicle and Personel, Embarcação de Desembarque- Veículos e Pessoal), de 15m e de 11m, enfrentaram ainda mais problemas.
            A partida de nosso grupo de LCI(L)s não foi muito impressionante – apenas uma fila dupla de navios, saindo em direção a um encontro marcado com muitos outros navios, às 3h, a 16 ou 24km de distância de um ponto no litoral da Baixa Normandia. A maioria dos soldados viajou em grandes embarcações de transporte, a partir das quais embarcações menores os levaram até a praia. As LCI(L)s carregavam unidades especialmente embaladas para serem entregues na porta de entrada da Europa.
            O tenente Rigg foi dormir cedo naquela noite porque estar  queria estar bem descansado para enfrentar um dia de trabalho duro quando chegássemos ao ponto de encontro marcado, que teria lugar na área conhecida como área de transporte. O comandante do batalhão naval de praia que viajava conosco fez o mesmo. Eu passei algum tempo em pé no convés. Assim que senti sono, desci para o pequeno compartimento, no qual tinha um beliche, e dormi – vestido, naturalmente.
            Não parecia haver mais nada a fazer, Isso foi por volta das 20h. Acordei três horas mais tarde e vi o sujeito a meu lado vomitando num saco de papel, subi para a cozinha e tomei um café. Depois voltei para meu beliche e dormi até ser acordado novamente por uma mudança de movimento e no ruído dos motores.
            O navio estava balançando devagar, e calculei que tivéssemos chegado à área de transporte e que estivéssemos fazendo hora. Olhei meu relógio de pulso e vi que estávamos na hora. Eram aproximadamente 3h. Logo, não havíamos sido atingidos por uma lancha torpedeira. Que bom. Sonolento, estranhei um pouco o fato de o inimigo não ter feito qualquer tentativa de interceptar a frota e desejei que houvesse boa cobertura aérea, porque estava certo de que a Luftwaffe não teria como deixar passar em branco o maior alvo da história.
            Decidi permanecer em meu beliche até o amanhecer, cochilei, acordei outra vez e resolvi que não iria conseguir dormir. Subi para o convés na luz cinzenta que acontece a aurora, em algum momento antes das 5h. Servi-me de uma xícara de café de uma urna elétrica na cozinha e fiquei em pé ao lado da porta, tomando café e olhando para os grandes navios ao nosso lado. Ao lado deles, eu me sentia proletário. Eles iriam permanecer no meio do canal e enviar suas tropas para a praia em embarcações pequenas, enquanto navios operários como o nosso avançariam até a praia.
            O navio de comando do almirante estava ali ao lado. Eu o imaginava todo equipado com engenhocas espertas que registrariam o correr da operação. Imaginava a chegada de um relatório lacônico detalhando a aniquilação de uma frota de LCI(L)s, incluindo a nossa, e podia ouvir algum sujeito dizendo: “Afinal, esse tipo de coisa era de se esperar”. Depois senti que tudo ficaria bem, porque sempre havia sido assim. Um segundo contramestre, segunda classe, chamado Barret, de Rich Square, Carolina do Norte, parou ao meu lado para tomar seu café e falou: “Apostei um dólar com Findley que desta vez seremos atingidos. Quase sempre somos. É dinheiro certo”.
            Eu sabia que só começaríamos a nos deslocar por volta das 6h30, horário programado para o primeiro homem pisar na praia. Então deixaríamos a área de transporte para que pudéssemos abicar na praia e dar conta de nossa tarefa específica: desembarcar um pelotão do batalhão naval de praia e um pelotão de engenheiros anfíbios do Exército às 7h35. Um bombardeio preliminar das defesas da praia pela Marinha estava previsto para começar ao amanhecer. “Daqui a pouco vamos começar a ouvir os canhões”, eu disse a Barret, e subi a escada para o convés superior. Rigg estava na ponte de comando, tomando café, e com ele estava Long, o oficial engenheiro do navio. Começou a ficar mais claro, e os canhões entre nós e a praia começaram a disparar. O som nos alegrou a todos, e Long falou: “Eu odiaria ser alvo desse fogo”. Antes do amanhecer, as barcaças de transporte haviam começado a colocar homens nas embarcações pequenas que se dirigiam à linha mais próxima à costa, desde a qual seria lançada a primeira onda de ataque.
Agora o tempo já se arrastava. Começamos a avançar antes do que eu previra, não sei bem por quê. As primeiras tropas já estavam nas praias. Enquanto nos aproximávamos, o encouraçado Arkansas e os cruzadores franceses Montcalm e Georges Leygues disparavam a nosso estibordo. Disparavam contra alvos situados mais longe em terra. Nuvens de fumaça amarela de explosivos se elevavam no ar. Havia algo de leonino em sua tonalidade e também no rugido que as seguia após aquele lapso de tempo que nunca deixa de me desconsertar. Passamos pelos navios grandes, como um garotinho que recebe a benção paterna. Evidentemente, os alemães não tinham canhões de longo alcance nas praias, como os que havia perto de Calais, já que o fogo dos encouraçados não recebia resposta. Isso me deu uma sensação boa. A ausência de resistência sempre aumenta minha confiança. O comandante do batalhão naval de praia subiu ao convés vestido como soldado, de macacão esverdeado e capacete de latão. Eu lhe disse em tom alegre: “Bem, parece que a maior dificuldade que o senhor terá será enfiar os pés na água fria”.
            Ele ficou  ali um minuto e disse: “O que você está pensando?”.
            Respondi: “Não sei por que, mas estou pensando no restaurante do jardim atrás do Museu de Arte Moderna, em Nova York”[1]. Ele riu, e eu lhe dei um par de binóculos que tinha, porque sabia que ele não tinha binóculos e que teria usos importantes para fazer dele.
            Nossos passageiros – o pelotão do batalhão de praia e os engenheiros anfíbios – estavam formando filas no convés principal, cada grupo de frente para a rampa pela qual iria descer do navio. Vaghi e Reich, oficiais de baixa patente do batalhão de praia, estavam enfileirando seus homens a bombordo, e Miller, um tenente do Exército com barba recente, organizava seus homens a estibordo. Desejei boa sorte ao comandante e subi para a ponte de comando, que era pequena e estava lotada, mas oferecia a melhor visão.
            Uma LCI(L) tem duas rampas, uma de cada lado de sua proa, que ele abaixa e projeta a sua frente ao abicar. Cada rampa é manejada por meio de um guincho operado por dois homens; os dois guinchos ficam lado a lado, num convés logo à popa da proa. Se os guinchos não funcionam, a operação inteira fracassa, de modo que o capitão de um LCI(L) sempre destaca homens confiáveis para operá-los. Dois marinheiros chamados Findley e Lechich estavam no guincho de bombordo, e dois que eu conhecia como Rocky e Bill operavam o outro. Willians, o oficial executivo do navio, estava no convés de baixo, ao lado dos quatro.
            Já fazia tempo que avistávamos a costa, e eu reconhecia nossa faixa de praia pelas fotos de inteligência que vira. Lá estava a casa com a torre, no alto do penhasco a nosso estibordo. Havíamos sido avisados de que o bombardeio preliminar talvez o destruísse, de modo que não deveríamos contar demais com ela como ponto de referência; mas lá estava a casa, e senti prazer em reconhece-la. A previsão era que um caminho teria sido aberto (por explosão) e varrido para nós em meio ao elemento C (obstáculos de concreto e ferro submarinos) e às minas, e sua entrada, marcada com boias coloridas. As boias estavam lá, de modo que evidentemente, a operação estava seguindo conforme o previsto. Nossa LCI(L) fez sua volta e dirigiu-se à abertura. Não sei se Rigg de repente começou a se preocupar com minha segurança ou se simplesmente não me queria lá, atrapalhando quem estava na ponte de comando, onde dois oficias e dois sinaleiros já estavam tendo dificuldade em se movimentar, mesmo sem a minha presença. Falou: “O sr. Liebling assumirá seu lugar no convés superior durante a ação”. Era linguagem formal de um rapaz que eu já me acostumara a chamar de Bunny, mesmo porque a ação não parecia estar violenta, mas desci a escada curta da ponte para o convés, com isso colocando a casa do leme entre mim e a proa. O convés superior também era o posto de um imediato de farmacêutico de nome Kallam, que era nosso reserva de primeiros socorros. Uma embarcação de desembarque não conta com médico – a teoria é que o imediato de farmacêutico fará os reparos temporários até que o paciente possa ser transferido para um navio maior. Tínhamos a bordo dois homens que ocupavam esse cargo. O outro, um sujeito chamado Barry, estava lá em cima, na proa. Kallam era um rapaz pálido e alto da Carolina do Norte que certa vez me contou que ingressara na Marinha em tempo de paz, quando jovem, e desde então nunca soubera fazer outra coisa.
            A costa descrevia uma curva em nossa direção, pelo lado de bombordo do navio, e quando olhei naquela direção vi muita fumaça vinda do que pareciam ser granadas explodindo na praia.
            Também havia um LCT encalhada e em chamas. “Parece que está havendo oposição:, disse a Kallam, com pouca originalidade. Mais ou menos no mesmo momento alguma coisa caiu na água a nossa quadra da popa, enviando jatos de água no ar. Estávamos nos aproximando rapidamente da praia. Pelo plano que vira tantas vezes nos últimos dias, eu podia visualizar a pista estreita e reta na qual tínhamos que nos manter. A vista desde cada um dos lados mudava rapidamente. A LCT que estivera a nossa proa de bombordo agora estava à nossa quadra de bombordo, e também se via outra LCT, também encalhada. Vários homens que evidentemente acabavam de abandoná-la estavam n’água, alguns até o pescoço e outros até as axilas, e não pareciam estar tentando chegar à praia. Balas luminosas[2] zuniam em volta deles, que pareciam estar perplexos. O que mais odeio nas balas luminosas é que, a cada vez que você vê uma, sabe que há outras quatro que você não viu, porque o cinto das metralhadoras é carregado com apenas uma bala luminosa em cada cinco balas. Justamente nesse momento, me parece em retrospectiva, senti o navio dar no seco.
            Olhei para baixo, para o convés principal, e os homens do batalhão de praia já estavam avançando, então percebi que as rampas deveriam ter sido abaixadas. Eu ouvia Long gritando: “Mexam-se! Mexam-se, para frente”. Mas os homens não precisavam de incentivo – estavam avançando sem sinal de hesitação. Já não era preciso olhar longe para encontrar as balas luminosas, e Kallam e eu achatamos as costas contra a casa do leme e encolhemos as barrigas, como que para dar uns centímetros a mais de passagem livre para as possíveis balas. Senti uma coceira na nuca. Pus a mão no lugar e descobri que estava com a maior parte do cordame do navio caído em meu pescoço e ombros, como um personagem de alguma comédia antiga sobre uma fábrica de espaguete. O cordame havia sido destroçado pelas balas. Quando Kallam e eu olhamos para a popa, vimos um quadro que lembrava um cartaz pedindo recrutas para as Forças Armadas. Havia um canhão de 20milimetros, disparos rápidos, no convés superior. Como não podia avançar devido à casa do leme e não havia nada contra o qual atirar de cada lado, estava apontando diretamente para o alto, preparado para um possível ataque de bombardeiros de mergulho. O canhão era tripulado por três homens, e eles estavam ajoelhados a sua volta, um de cada lado e outro atrás do cano, todos olhando para o céu com um olhar fixo e protegendo-se o máximo possível atrás do escudo do canhão. Como pano de fundo para as cabeças dos homens, uma bandeira americana na popa do navio cobria nosso campo de visão. Era uma bandeira nova que Rigg mandata hastear pela primeira vez na invasão, e suas cores brilhavam ao Sol. Para tornar perfeito o motivo do cartaz, um dos três homens era um negro, Willian Jackson, de Nova Orleans, comissário do alojamento dos oficiais, que, como todos na LCI(L), se desincumbia de múltiplas tarefas.
            O último passageiro já havia descido do navio, e eu ouvia o cabo da âncora de popa batendo no tambor enquanto subia. Uma UCI(L) abaixa a âncora de popa logo antes de dar em seco e solta de 50 a 100 braças de cabo enquanto lentamente desliza os últimos metros até a praia. Para começar a andar novamente, recolhe o cabo e se puxa até voltar a boiar. Até aquele instante eu não percebera o quão estava ansioso para ouvir o som do cabo que se segue à ordem de “Recolher âncora de popa”. Praticamente no mesmo momento em que o cabo começou a ser recolhido, alguma coisa atingiu o navio com o som sólido de metal contra metal – não tão duro quanto uma colisão ou uma explosão de bomba, apenas um som de choque. Long berrou em nossa direção: “Imediato do farmacêutico, par a proa. Alguém se machucou”. Kallam desceu a escada do convés principal, carregando sua maleta. Depois Long gritou para o homem do guincho da âncora de popa: “Dá-lhe tudo!”. Uma LCI(L) tem que se puxar para fora e recolher sua âncora para poder usar seus motores, senão a hélice pode se enrolar no cabo. O motorzinho que move o guincho é fabricado por uma companhia de equipamentos agrícolas de Waukesha, Wisconsin, e cada gorta de gasolina que entrava no motorzinho do nosso navio tinha que passar primeiro por um filtro de camurça. Aquele motor é a apólice de seguro do navio. Um marinheiro subiu a escada correndo, vindo da cabine. Ele me agarrou e gritou: “Duas baixas na proa!”. Passei a informação para a ponte de comando, sem saber se adiantaria alguma coisa; ambos os imediatos de farmacêutico já estavam lá e, na realidade, não havia mais nada a se fazer. Nossa embarcação já estava livre na água, a âncora recolhida, e os motores entraram em ação. Ela deu meia volta e avançou em alta velocidade, como um destroier. O imediato do maquinista-chefe contou, depois, que os motores fizeram 700 rotações por minuto, em lugar das 600 que eram sua velocidade máxima normal. Granadas provocavam esguichos d’água à nossa volta; a água que subia parecia estar negra. Mais tarde, Rigg falou: “É engraçado. Quando estávamos entrando, minha atenção toda estava voltada a duas minas presas a blocos de concreto afundados nos dois lados de lugar por onde entramos. Eu sabia que não haviam sido retiradas – apenas havia sido aberto um caminho entre elas. Eram ‘minas aranhas’, aquelas que têm um monte de cabos soltos. Basta encostar em um cabo e você detona a mina. Quando estava saindo, eu estava tão maluco que me esqueci totalmente das malditas minas e só me lembrei delas quando estavam três quilômetros para trás”.
            Um marinheiro passou por nós e Shorty, um dos homens que tripulava o canhão, perguntou: “Quem foi?”. O marinheiro disse: “Rocky e Bill. Estão detonados. Uma granada pegou o guincho, a rampa e tudo”. Fui até o convés do poço. Estava grudento, coberto por um misto de sangue e leite condensado. Os soldados haviam deixado caixas de mantimentos jogadas por todo navio, e um fragmento de granada que atingira os rapazes destroçara uma caixa de latas de leite. Rocky e Bill tinham sido transferidos para um dos grandes compartimentos dianteiros, abaixo do convés. Rocky estava morto sem sombra de dúvida, alguém me disse, mas os imediatos do farmacêutico tinham dado plasma sanguíneo a Bill e achavam que talvez ele ainda estivesse vivo.
            Um terceiro ferido, um soldado vestido de cáqui, estava deitado numa maca no convés, respirando, ofegante, pela boca. Seu rosto parecia a pele suja de um tambor; a pele estava branca e muito esticada sobre os ossos da face. Ele não estava fazendo muito barulho. Um cheiro de galeria de tiro ao alvo cobria tudo, e, quando passamos perto do Arkansas ele disparou uma salva de artilharia, dois homens que estavam de costas para nós tremeram e precisaram ser tranquilizados. Long e Kavanaugh, o oficial de comunicações, já estavam andando pelo navio tentando colocar as coisas em funcionamento outra vez, mas com pouco êxito inicialmente.
            Na metade do caminho de saída da área de transportes, outra LCI(L) nos fez parar e pediu para levarmos um ferido a bordo. Haviam pego de alguma embarcação menor, mas tinham que completar uma missão antes de retornarem aos navios grandes. Fomos até o lado e o puxamos por cima da grade. Ele estava embrulhado em cobertores cáqui e amarrado numa maca, dentro de um cesto de metal. Quando nos afastamos, um homem a bordo da outra LCI(L) gritou para que voltássemos, para que pudesse nos dar  um vidro semivazio de plasma do qual saia um tubo de borracha. “Isto aqui o acompanha”, falou. Voltamos até onde estava o ferido e demos o vidro a um dos nossos sujeitos. Foi trabalho em vão, porque o homem já tinha parado de respirar.
            Abrimos caminho até um navio de transporte chamado Dorothea Dix, equipado com uma enfermaria. Atracamos bordo a bordo. Um jovem médico naval desceu pela rede pendurada ao lado do Dix e subiu a bordo. Depois de olhar para nosso soldado, pediu uma boia calção, e o soldado foi puxado para bordo, sentado nela. Ele tinha sido atingido no ombro e em uma perna, e o médico disse que tinha boas chances. Os três outros tiveram que ser enviados em cestas de metal, verticalmente, como bebês índios. Dois negros no convés no Dix jogaram uma corda que nossos homens amarraram ao alto de uma cesta após outra. Depois os negros puxavam o homem para cima, como se ele fosse para o céu. Agora que não levávamos mais passageiros e estávamos mais leves, o mar parecia estar agitado. Balançávamos sob o enorme navio de transporte, e os feridos balançavam loucamente no final da corda, algumas vezes quase se chocando com o navio. Um home da Guarda Costeira segurou o fundo de uma das cestas para firmá-la. Pelo menos um litro de sangue escorreu sobre ele, cobrindo seu capacete de latão, seu rosto virado para cima e seu macacão azul. Ele ficou parado por um instante, como se não soubesse o que havia acontecido, enxergando o mundo através de uma camada vermelha, porque usava óculos e o sangue recobrira as lentes.[3] Balançando a esmo, a cesta subiu. Depois de alguns segundos, o homem da Guarda Costeira correu até a pia à popa da cozinha, onde abriu a torneira e começou a se lavar. Alguns minutos depois de a última liteira ter sido puxada para bordo, um oficial do Dix encostou na grade e gritou: “O oficial médico diz que dois desses homens estão mortos! Ele diz que vocês devem leva-los de volta à praia e enterrá-los”. Do lugar onde estávamos, a 25km da praia, ele evidentemente pensava que se tratava apenas de mais um exercício de desembarque. Um marinheiro que estava no convés falou: “O filho da puta deveria ver aquela praia para saber como está”.
            Rigg explicou ao oficial que seria impossível retornar à praia e mandou os homens desamarrarem as cordas, e deixamos o Dix para trás. Agora que estávamos livres dos mortos e feridos, vi Kallam esgueirar-se até a grade do outro lado e vomitar mais do que eu já vira qualquer homem vomitar no mar. Passamos bem perto do navio de comando e assinalamos que havíamos completado nossa missão. Recebemos o sinal de “aguardar ordens” e passamos o resto do dia sem fazer nada, enquanto tentávamos reconstruir o que nos acontecera. Quase todos que estavam a bordo sentiam dores de cabeça.
            “O que me deixa mais chateado”, disse Lechich, “é pensar no que aconteceu àqueles coitados que desembarcamos. A praia estava fervilhando de alemães. E eles não tinham nada com que lutar – só carabinas e fuzis. Nem sequer estavam previstos para serem usados como tropas de combate”.
            “Acho que nenhum deles deve estar vivo agora”, disse outro homem.
            À medida que as horas passavam e não recebíamos ordens de fazer nada, tornou-se evidente que nosso trechinho de praia não estava se saindo bem, pois havíamos previsto, depois de entregar nosso primeiro lote na praia, ser empregado para levar outros grupos de soldados das embarcações de transporte até a praia, que, enquanto isso, os rapazes do batalhão de praia e os engenheiros estariam ajudando a limpar. Outras LCI(L)s de nossa flotilha também estavam ociosas. Vimos uma delas sendo rebocada e depois a vimos virar. Disseram-nos que três outras estavam deitadas em um trecho da praia, queimadas. As embarcações de desembarque eram vistas como equipamento que podia ser sacrificado, quando preciso. Rigg desceu da ponte de comando e, ao me ver, disse: “A praia está fechada às LCI(L)s. Só barquinhos pequenos estão entrando. Queria que eles tivessem pensado nisso antes. Perdemos três homens bons”.
            “Quais três?”, perguntei. “Estou sabendo de Rocky e Bill”.
            “O timoneiro se foi”, disse Bunny. Eu me lembrava do timoneiro, um jovem sério e sincero que queria ser jornalista e que, vestindo apenas calção, iria descer antes de todo mundo e puxar um cabo de amarração até a praia.
            “Ele não conseguiu voltar?”, perguntei.
            “Não conseguiu ir a lugar nenhum”, respondeu Rigg. “Deu um passo para fora da rampa e foi desintegrado. Deve ter pisado bem em cima de uma granada de alto explosivo. Cox era um bom menino. Nós o tínhamos recomendado para a escola de oficiais”. Rigg saiu em busca da inevitável xícara de café, sacudindo a grande cabeça. Percebi que também ele estava com dor de cabeça.
            Um pouco mais tarde, perguntei a Rigg o que estivera pensando quando nos aproximamos da praia, e ele disse que estava bravo porque os homens que íamos desembarcar não tinham tomado um café. “Em vez disso, os coitados passaram o máximo de tempo possível na cama”, disse. “Desembarcar sem nem mesmo tomar um café!”
           
Obs.: As fotos reproduzidas nesta matéria foram realizadas por Robert Capa, um dos maiores nomes da história da fotografia e que realizou os documentos visuais mais fortes do desembarque dos aliados na praia de Omaha, em 6 de junho de 1944.
Capa nasceu em Budapeste em 1913. Em 1939 emigou para o EUA. Em 1947 fundou com Henri Cartier-Bresson a agência Magnum. Suas imagens de Omaha, feitas para a revista "Life" influenciaram decisivamente a estética de Spielberg na primeira sequencia de "O Resgate do Soldado Ryan". Capa morreu em 1954.

[1] Eu gostava de uma mulher que vivia do outro lado da rua, em frente ao restaurante.

[2] Por “luminosas” entenda-se munição traçante.

[3][3] Este homem era eu. Pareceu-me mais discreto na época descrever a cena assim – um artigo de jornal no qual o autor dissesse que ele próprio ficou banhado em sangue me faria desconfiar de sua veracidade se eu fosse o leitor.