O Dia D
Texto publicado
pela Folha de São Paulo no Caderno Mais!, no domingo, 11 de outubro de 1998.
O texto
de que o Mais! reproduz um trecho nesta
e na próxima página foi escrito pelo jornalista norte-americano Abbott Joseph
Liebling (1904-1963) para a revista “The New Yorker” na década de 40 –
posteriormente, ele foi incluído no livro “Mollie & Other War Pieces”
(Mollie & Outros Artigos de Guerra, Editora Shocken).
Liebling
participou do desembarque das tropas aliadas na Normandia, França, no Dia D (6
de junho de 1944). Percebendo que presenciava uma das mais importantes
operações militares da história, optou por escrever uma reportagem seca e
direta, sem floreios de estilo ou tentativas de reflexão. Algumas das cenas
iniciais de “O Resgato do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, são claramente
inspiradas no texto do jornalista.
Por Abbott
Joseph Liebling
Tradução de Clara Alain
Em tempos de paz ou de guerra a travessia
do Canal da Mancha de navio sempre começa com os passageiros no mesmo estado de
ânimo: todos esperando que não tenham enjoo. Trata-se, de modo geral, de um
fator de moral favorável para a véspera de uma invasão. Um soldado não pode se
angustiar com possíveis ataques da Luftwaffe (Força Aérea Alemã) ou das lanchas
torpedeiras quando está preocupado consigo mesmo, e o temor difuso de topar com
armas secretas na outra margem do canal é contrabalançado pelo urgente desejo
de pôr os pés sobre essa outra margem.
Poucos dos 140 passageiros do LCI-(L)
(Landing Craft Infantry – Large – Embarcação de Desembarque de Infantaria –
Grande), na qual eu estava, tiveram
enjoo forte na noite antes do Dia D, mas todos estavam ocupados pensando
nisso. Os quatro oficiais e 29 homens da Guarda Costeira dos Estados Unidos que
compunham a tripulação nem sequer estavam enjoados, mas tinham trabalho a
fazer, o que funcionava igualmente bem.
O mal tempo sobre o qual os jornais
falaram tanto depois do Dia D e que, de fato, atrapalhou o desembarque, não era
o tipo que faz balançar transatlânticos ou mesmo navios de travessia do Canal
da Mancha; era apenas um pouco mau demais para os tipos menores de embarcações
de desembarque que usávamos.
Uma LCI(L), como seu próprio nome
indica, não é uma das menores, mas é bastante pequena, e, a bordo de nossa
embarcação de 300 toneladas e fundo chato, o canal não parecia estar
especialmente ruim naquela noite. O mar ficou agitado durante uma hora depois
de deixarmos o porto, mas depois disso a viagem foi melhor do que eu previra.
As LCTs (Landing Craft Tank, Embarcação de Desembarque – Tanques), construídas
como cubas abertas com 30m de comprimento, para transportar veículos blindados,
tiveram dificuldades muito maiores, especialmente porque, por serem lentas,
tiveram que partir horas antes de nós. As LCM (Landing Craft – Mechanized,
Embarcação de Desembarque – Mecanizados), de 15m e as LCVPs (Landing Craft –
Vehicle and Personel, Embarcação de Desembarque- Veículos e Pessoal), de 15m e
de 11m, enfrentaram ainda mais problemas.
A partida de nosso grupo de LCI(L)s
não foi muito impressionante – apenas uma fila dupla de navios, saindo em
direção a um encontro marcado com muitos outros navios, às 3h, a 16 ou 24km de
distância de um ponto no litoral da Baixa Normandia. A maioria dos soldados
viajou em grandes embarcações de transporte, a partir das quais embarcações menores
os levaram até a praia. As LCI(L)s carregavam unidades especialmente embaladas
para serem entregues na porta de entrada da Europa.
O tenente Rigg foi dormir cedo
naquela noite porque estar queria estar
bem descansado para enfrentar um dia de trabalho duro quando chegássemos ao
ponto de encontro marcado, que teria lugar na área conhecida como área de transporte.
O comandante do batalhão naval de praia que viajava conosco fez o mesmo. Eu
passei algum tempo em pé no convés. Assim que senti sono, desci para o pequeno
compartimento, no qual tinha um beliche, e dormi – vestido, naturalmente.
Não parecia haver mais nada a fazer,
Isso foi por volta das 20h. Acordei três horas mais tarde e vi o sujeito a meu
lado vomitando num saco de papel, subi para a cozinha e tomei um café. Depois
voltei para meu beliche e dormi até ser acordado novamente por uma mudança de
movimento e no ruído dos motores.
O navio estava balançando devagar, e
calculei que tivéssemos chegado à área de transporte e que estivéssemos fazendo
hora. Olhei meu relógio de pulso e vi que estávamos na hora. Eram
aproximadamente 3h. Logo, não havíamos sido atingidos por uma lancha
torpedeira. Que bom. Sonolento, estranhei um pouco o fato de o inimigo não ter
feito qualquer tentativa de interceptar a frota e desejei que houvesse boa
cobertura aérea, porque estava certo de que a Luftwaffe não teria como deixar
passar em branco o maior alvo da história.
Decidi permanecer em meu beliche até
o amanhecer, cochilei, acordei outra vez e resolvi que não iria conseguir
dormir. Subi para o convés na luz cinzenta que acontece a aurora, em algum
momento antes das 5h. Servi-me de uma xícara de café de uma urna elétrica na
cozinha e fiquei em pé ao lado da porta, tomando café e olhando para os grandes
navios ao nosso lado. Ao lado deles, eu me sentia proletário. Eles iriam
permanecer no meio do canal e enviar suas tropas para a praia em embarcações pequenas,
enquanto navios operários como o nosso avançariam até a praia.
O navio de comando do almirante estava
ali ao lado. Eu o imaginava todo equipado com engenhocas espertas que
registrariam o correr da operação. Imaginava a chegada de um relatório lacônico
detalhando a aniquilação de uma frota de LCI(L)s, incluindo a nossa, e podia
ouvir algum sujeito dizendo: “Afinal, esse tipo de coisa era de se esperar”.
Depois senti que tudo ficaria bem, porque sempre havia sido assim. Um segundo
contramestre, segunda classe, chamado Barret, de Rich Square, Carolina do
Norte, parou ao meu lado para tomar seu café e falou: “Apostei um dólar com
Findley que desta vez seremos atingidos. Quase sempre somos. É dinheiro certo”.
Eu sabia que só começaríamos a nos
deslocar por volta das 6h30, horário programado para o primeiro homem pisar na
praia. Então deixaríamos a área de transporte para que pudéssemos abicar na
praia e dar conta de nossa tarefa específica: desembarcar um pelotão do
batalhão naval de praia e um pelotão de engenheiros anfíbios do Exército às
7h35. Um bombardeio preliminar das defesas da praia pela Marinha estava
previsto para começar ao amanhecer. “Daqui a pouco vamos começar a ouvir os
canhões”, eu disse a Barret, e subi a escada para o convés superior. Rigg
estava na ponte de comando, tomando café, e com ele estava Long, o oficial
engenheiro do navio. Começou a ficar mais claro, e os canhões entre nós e a
praia começaram a disparar. O som nos alegrou a todos, e Long falou: “Eu
odiaria ser alvo desse fogo”. Antes do amanhecer, as barcaças de transporte
haviam começado a colocar homens nas embarcações pequenas que se dirigiam à
linha mais próxima à costa, desde a qual seria lançada a primeira onda de
ataque.
Agora o
tempo já se arrastava. Começamos a avançar antes do que eu previra, não sei bem
por quê. As primeiras tropas já estavam nas praias. Enquanto nos aproximávamos,
o encouraçado Arkansas e os cruzadores franceses Montcalm e Georges Leygues
disparavam a nosso estibordo. Disparavam contra alvos situados mais longe em
terra. Nuvens de fumaça amarela de explosivos se elevavam no ar. Havia algo de
leonino em sua tonalidade e também no rugido que as seguia após aquele lapso de
tempo que nunca deixa de me desconsertar. Passamos pelos navios grandes, como um
garotinho que recebe a benção paterna. Evidentemente, os alemães não tinham
canhões de longo alcance nas praias, como os que havia perto de Calais, já que
o fogo dos encouraçados não recebia resposta. Isso me deu uma sensação boa. A
ausência de resistência sempre aumenta minha confiança. O comandante do
batalhão naval de praia subiu ao convés vestido como soldado, de macacão
esverdeado e capacete de latão. Eu lhe disse em tom alegre: “Bem, parece que a
maior dificuldade que o senhor terá será enfiar os pés na água fria”.
Ele ficou ali um minuto e disse: “O que você está
pensando?”.
Respondi: “Não sei por que, mas
estou pensando no restaurante do jardim atrás do Museu de Arte Moderna, em Nova
York”[1].
Ele riu, e eu lhe dei um par de binóculos que tinha, porque sabia que ele não
tinha binóculos e que teria usos importantes para fazer dele.
Nossos passageiros – o pelotão do
batalhão de praia e os engenheiros anfíbios – estavam formando filas no convés
principal, cada grupo de frente para a rampa pela qual iria descer do navio.
Vaghi e Reich, oficiais de baixa patente do batalhão de praia, estavam
enfileirando seus homens a bombordo, e Miller, um tenente do Exército com barba
recente, organizava seus homens a estibordo. Desejei boa sorte ao comandante e
subi para a ponte de comando, que era pequena e estava lotada, mas oferecia a
melhor visão.
Uma LCI(L) tem duas rampas, uma de
cada lado de sua proa, que ele abaixa e projeta a sua frente ao abicar. Cada
rampa é manejada por meio de um guincho operado por dois homens; os dois
guinchos ficam lado a lado, num convés logo à popa da proa. Se os guinchos não
funcionam, a operação inteira fracassa, de modo que o capitão de um LCI(L)
sempre destaca homens confiáveis para operá-los. Dois marinheiros chamados
Findley e Lechich estavam no guincho de bombordo, e dois que eu conhecia como
Rocky e Bill operavam o outro. Willians, o oficial executivo do navio, estava
no convés de baixo, ao lado dos quatro.
Já fazia tempo que avistávamos a
costa, e eu reconhecia nossa faixa de praia pelas fotos de inteligência que
vira. Lá estava a casa com a torre, no alto do penhasco a nosso estibordo. Havíamos
sido avisados de que o bombardeio preliminar talvez o destruísse, de modo que
não deveríamos contar demais com ela como ponto de referência; mas lá estava a
casa, e senti prazer em reconhece-la. A previsão era que um caminho teria sido
aberto (por explosão) e varrido para nós em meio ao elemento C (obstáculos de
concreto e ferro submarinos) e às minas, e sua entrada, marcada com boias
coloridas. As boias estavam lá, de modo que evidentemente, a operação estava
seguindo conforme o previsto. Nossa LCI(L) fez sua volta e dirigiu-se à
abertura. Não sei se Rigg de repente começou a se preocupar com minha segurança
ou se simplesmente não me queria lá, atrapalhando quem estava na ponte de
comando, onde dois oficias e dois sinaleiros já estavam tendo dificuldade em se
movimentar, mesmo sem a minha presença. Falou: “O sr. Liebling assumirá seu
lugar no convés superior durante a ação”. Era linguagem formal de um rapaz que
eu já me acostumara a chamar de Bunny, mesmo porque a ação não parecia estar
violenta, mas desci a escada curta da ponte para o convés, com isso colocando a
casa do leme entre mim e a proa. O convés superior também era o posto de um
imediato de farmacêutico de nome Kallam, que era nosso reserva de primeiros
socorros. Uma embarcação de desembarque não conta com médico – a teoria é que o
imediato de farmacêutico fará os reparos temporários até que o paciente possa
ser transferido para um navio maior. Tínhamos a bordo dois homens que ocupavam
esse cargo. O outro, um sujeito chamado Barry, estava lá em cima, na proa.
Kallam era um rapaz pálido e alto da Carolina do Norte que certa vez me contou
que ingressara na Marinha em tempo de paz, quando jovem, e desde então nunca
soubera fazer outra coisa.
A costa descrevia uma curva em nossa
direção, pelo lado de bombordo do navio, e quando olhei naquela direção vi
muita fumaça vinda do que pareciam ser granadas explodindo na praia.
Também havia um LCT encalhada e em
chamas. “Parece que está havendo oposição:, disse a Kallam, com pouca
originalidade. Mais ou menos no mesmo momento alguma coisa caiu na água a nossa
quadra da popa, enviando jatos de água no ar. Estávamos nos aproximando rapidamente
da praia. Pelo plano que vira tantas vezes nos últimos dias, eu podia
visualizar a pista estreita e reta na qual tínhamos que nos manter. A vista
desde cada um dos lados mudava rapidamente. A LCT que estivera a nossa proa de
bombordo agora estava à nossa quadra de bombordo, e também se via outra LCT,
também encalhada. Vários homens que evidentemente acabavam de abandoná-la
estavam n’água, alguns até o pescoço e outros até as axilas, e não pareciam
estar tentando chegar à praia. Balas luminosas[2]
zuniam em volta deles, que pareciam estar perplexos. O que mais odeio nas balas
luminosas é que, a cada vez que você vê uma, sabe que há outras quatro que você
não viu, porque o cinto das metralhadoras é carregado com apenas uma bala
luminosa em cada cinco balas. Justamente nesse momento, me parece em
retrospectiva, senti o navio dar no seco.
Olhei para baixo, para o convés
principal, e os homens do batalhão de praia já estavam avançando, então percebi
que as rampas deveriam ter sido abaixadas. Eu ouvia Long gritando: “Mexam-se!
Mexam-se, para frente”. Mas os homens não precisavam de incentivo – estavam avançando
sem sinal de hesitação. Já não era preciso olhar longe para encontrar as balas
luminosas, e Kallam e eu achatamos as costas contra a casa do leme e encolhemos
as barrigas, como que para dar uns centímetros a mais de passagem livre para as
possíveis balas. Senti uma coceira na nuca. Pus a mão no lugar e descobri que
estava com a maior parte do cordame do navio caído em meu pescoço e ombros,
como um personagem de alguma comédia antiga sobre uma fábrica de espaguete. O
cordame havia sido destroçado pelas balas. Quando Kallam e eu olhamos para a
popa, vimos um quadro que lembrava um cartaz pedindo recrutas para as Forças
Armadas. Havia um canhão de 20milimetros, disparos rápidos, no convés superior.
Como não podia avançar devido à casa do leme e não havia nada contra o qual
atirar de cada lado, estava apontando diretamente para o alto, preparado para
um possível ataque de bombardeiros de mergulho. O canhão era tripulado por três
homens, e eles estavam ajoelhados a sua volta, um de cada lado e outro atrás do
cano, todos olhando para o céu com um olhar fixo e protegendo-se o máximo
possível atrás do escudo do canhão. Como pano de fundo para as cabeças dos
homens, uma bandeira americana na popa do navio cobria nosso campo de visão.
Era uma bandeira nova que Rigg mandata hastear pela primeira vez na invasão, e
suas cores brilhavam ao Sol. Para tornar perfeito o motivo do cartaz, um dos
três homens era um negro, Willian Jackson, de Nova Orleans, comissário do
alojamento dos oficiais, que, como todos na LCI(L), se desincumbia de múltiplas
tarefas.
O último passageiro já havia descido
do navio, e eu ouvia o cabo da âncora de popa batendo no tambor enquanto subia.
Uma UCI(L) abaixa a âncora de popa logo antes de dar em seco e solta de 50 a
100 braças de cabo enquanto lentamente desliza os últimos metros até a praia.
Para começar a andar novamente, recolhe o cabo e se puxa até voltar a boiar.
Até aquele instante eu não percebera o quão estava ansioso para ouvir o som do
cabo que se segue à ordem de “Recolher âncora de popa”. Praticamente no mesmo
momento em que o cabo começou a ser recolhido, alguma coisa atingiu o navio com
o som sólido de metal contra metal – não tão duro quanto uma colisão ou uma
explosão de bomba, apenas um som de choque. Long berrou em nossa direção: “Imediato
do farmacêutico, par a proa. Alguém se machucou”. Kallam desceu a escada do
convés principal, carregando sua maleta. Depois Long gritou para o homem do
guincho da âncora de popa: “Dá-lhe tudo!”. Uma LCI(L) tem que se puxar para
fora e recolher sua âncora para poder usar seus motores, senão a hélice pode se
enrolar no cabo. O motorzinho que move o guincho é fabricado por uma companhia
de equipamentos agrícolas de Waukesha, Wisconsin, e cada gorta de gasolina que
entrava no motorzinho do nosso navio tinha que passar primeiro por um filtro de
camurça. Aquele motor é a apólice de seguro do navio. Um marinheiro subiu a
escada correndo, vindo da cabine. Ele me agarrou e gritou: “Duas baixas na
proa!”. Passei a informação para a ponte de comando, sem saber se adiantaria
alguma coisa; ambos os imediatos de farmacêutico já estavam lá e, na realidade,
não havia mais nada a se fazer. Nossa embarcação já estava livre na água, a
âncora recolhida, e os motores entraram em ação. Ela deu meia volta e avançou
em alta velocidade, como um destroier. O imediato do maquinista-chefe contou,
depois, que os motores fizeram 700 rotações por minuto, em lugar das 600 que
eram sua velocidade máxima normal. Granadas provocavam esguichos d’água à nossa
volta; a água que subia parecia estar negra. Mais tarde, Rigg falou: “É
engraçado. Quando estávamos entrando, minha atenção toda estava voltada a duas
minas presas a blocos de concreto afundados nos dois lados de lugar por onde
entramos. Eu sabia que não haviam sido retiradas – apenas havia sido aberto um
caminho entre elas. Eram ‘minas aranhas’, aquelas que têm um monte de cabos
soltos. Basta encostar em um cabo e você detona a mina. Quando estava saindo,
eu estava tão maluco que me esqueci totalmente das malditas minas e só me
lembrei delas quando estavam três quilômetros para trás”.
Um marinheiro passou por nós e
Shorty, um dos homens que tripulava o canhão, perguntou: “Quem foi?”. O
marinheiro disse: “Rocky e Bill. Estão detonados. Uma granada pegou o guincho,
a rampa e tudo”. Fui até o convés do poço. Estava grudento, coberto por um
misto de sangue e leite condensado. Os soldados haviam deixado caixas de
mantimentos jogadas por todo navio, e um fragmento de granada que atingira os
rapazes destroçara uma caixa de latas de leite. Rocky e Bill tinham sido transferidos
para um dos grandes compartimentos dianteiros, abaixo do convés. Rocky estava
morto sem sombra de dúvida, alguém me disse, mas os imediatos do farmacêutico tinham
dado plasma sanguíneo a Bill e achavam que talvez ele ainda estivesse vivo.
Um terceiro ferido, um soldado
vestido de cáqui, estava deitado numa maca no convés, respirando, ofegante,
pela boca. Seu rosto parecia a pele suja de um tambor; a pele estava branca e
muito esticada sobre os ossos da face. Ele não estava fazendo muito barulho. Um
cheiro de galeria de tiro ao alvo cobria tudo, e, quando passamos perto do
Arkansas ele disparou uma salva de artilharia, dois homens que estavam de
costas para nós tremeram e precisaram ser tranquilizados. Long e Kavanaugh, o
oficial de comunicações, já estavam andando pelo navio tentando colocar as
coisas em funcionamento outra vez, mas com pouco êxito inicialmente.
Na metade do caminho de saída da
área de transportes, outra LCI(L) nos fez parar e pediu para levarmos um ferido
a bordo. Haviam pego de alguma embarcação menor, mas tinham que completar uma
missão antes de retornarem aos navios grandes. Fomos até o lado e o puxamos por
cima da grade. Ele estava embrulhado em cobertores cáqui e amarrado numa maca,
dentro de um cesto de metal. Quando nos afastamos, um homem a bordo da outra
LCI(L) gritou para que voltássemos, para que pudesse nos dar um vidro semivazio de plasma do qual saia um
tubo de borracha. “Isto aqui o acompanha”, falou. Voltamos até onde estava o
ferido e demos o vidro a um dos nossos sujeitos. Foi trabalho em vão, porque o
homem já tinha parado de respirar.
Abrimos caminho até um navio de
transporte chamado Dorothea Dix, equipado com uma enfermaria. Atracamos bordo a
bordo. Um jovem médico naval desceu pela rede pendurada ao lado do Dix e subiu
a bordo. Depois de olhar para nosso soldado, pediu uma boia calção, e o soldado
foi puxado para bordo, sentado nela. Ele tinha sido atingido no ombro e em uma
perna, e o médico disse que tinha boas chances. Os três outros tiveram que ser
enviados em cestas de metal, verticalmente, como bebês índios. Dois negros no
convés no Dix jogaram uma corda que nossos homens amarraram ao alto de uma
cesta após outra. Depois os negros puxavam o homem para cima, como se ele fosse
para o céu. Agora que não levávamos mais passageiros e estávamos mais leves, o
mar parecia estar agitado. Balançávamos sob o enorme navio de transporte, e os
feridos balançavam loucamente no final da corda, algumas vezes quase se chocando
com o navio. Um home da Guarda Costeira segurou o fundo de uma das cestas para
firmá-la. Pelo menos um litro de sangue escorreu sobre ele, cobrindo seu
capacete de latão, seu rosto virado para cima e seu macacão azul. Ele ficou
parado por um instante, como se não soubesse o que havia acontecido, enxergando
o mundo através de uma camada vermelha, porque usava óculos e o sangue
recobrira as lentes.[3]
Balançando a esmo, a cesta subiu. Depois de alguns segundos, o homem da Guarda
Costeira correu até a pia à popa da cozinha, onde abriu a torneira e começou a
se lavar. Alguns minutos depois de a última liteira ter sido puxada para bordo,
um oficial do Dix encostou na grade e gritou: “O oficial médico diz que dois
desses homens estão mortos! Ele diz que vocês devem leva-los de volta à praia e
enterrá-los”. Do lugar onde estávamos, a 25km da praia, ele evidentemente pensava
que se tratava apenas de mais um exercício de desembarque. Um marinheiro que
estava no convés falou: “O filho da puta deveria ver aquela praia para saber
como está”.
Rigg explicou ao oficial que seria
impossível retornar à praia e mandou os homens desamarrarem as cordas, e
deixamos o Dix para trás. Agora que estávamos livres dos mortos e feridos, vi
Kallam esgueirar-se até a grade do outro lado e vomitar mais do que eu já vira
qualquer homem vomitar no mar. Passamos bem perto do navio de comando e
assinalamos que havíamos completado nossa missão. Recebemos o sinal de “aguardar
ordens” e passamos o resto do dia sem fazer nada, enquanto tentávamos
reconstruir o que nos acontecera. Quase todos que estavam a bordo sentiam dores
de cabeça.
“O que me deixa mais chateado”,
disse Lechich, “é pensar no que aconteceu àqueles coitados que desembarcamos. A
praia estava fervilhando de alemães. E eles não tinham nada com que lutar – só carabinas
e fuzis. Nem sequer estavam previstos para serem usados como tropas de combate”.
“Acho que nenhum deles deve estar
vivo agora”, disse outro homem.
À medida que as horas passavam e não
recebíamos ordens de fazer nada, tornou-se evidente que nosso trechinho de praia
não estava se saindo bem, pois havíamos previsto, depois de entregar nosso
primeiro lote na praia, ser empregado para levar outros grupos de soldados das
embarcações de transporte até a praia, que, enquanto isso, os rapazes do
batalhão de praia e os engenheiros estariam ajudando a limpar. Outras LCI(L)s
de nossa flotilha também estavam ociosas. Vimos uma delas sendo rebocada e
depois a vimos virar. Disseram-nos que três outras estavam deitadas em um
trecho da praia, queimadas. As embarcações de desembarque eram vistas como
equipamento que podia ser sacrificado, quando preciso. Rigg desceu da ponte de
comando e, ao me ver, disse: “A praia está fechada às LCI(L)s. Só barquinhos
pequenos estão entrando. Queria que eles tivessem pensado nisso antes. Perdemos
três homens bons”.
“Quais três?”, perguntei. “Estou
sabendo de Rocky e Bill”.
“O timoneiro se foi”, disse Bunny.
Eu me lembrava do timoneiro, um jovem sério e sincero que queria ser jornalista
e que, vestindo apenas calção, iria descer antes de todo mundo e puxar um cabo
de amarração até a praia.
“Ele não conseguiu voltar?”, perguntei.
“Não conseguiu ir a lugar nenhum”,
respondeu Rigg. “Deu um passo para fora da rampa e foi desintegrado. Deve ter
pisado bem em cima de uma granada de alto explosivo. Cox era um bom menino. Nós
o tínhamos recomendado para a escola de oficiais”. Rigg saiu em busca da inevitável
xícara de café, sacudindo a grande cabeça. Percebi que também ele estava com
dor de cabeça.
Um pouco mais tarde, perguntei a
Rigg o que estivera pensando quando nos aproximamos da praia, e ele disse que
estava bravo porque os homens que íamos desembarcar não tinham tomado um café. “Em
vez disso, os coitados passaram o máximo de tempo possível na cama”, disse. “Desembarcar
sem nem mesmo tomar um café!”
Obs.: As fotos reproduzidas nesta matéria foram realizadas por Robert Capa, um dos maiores nomes da história da fotografia e que realizou os documentos visuais mais fortes do desembarque dos aliados na praia de Omaha, em 6 de junho de 1944.
Capa nasceu em Budapeste em 1913. Em 1939 emigou para o EUA. Em 1947 fundou com Henri Cartier-Bresson a agência Magnum. Suas imagens de Omaha, feitas para a revista "Life" influenciaram decisivamente a estética de Spielberg na primeira sequencia de "O Resgate do Soldado Ryan". Capa morreu em 1954.
[1] Eu gostava de uma mulher que
vivia do outro lado da rua, em frente ao restaurante.
[2] Por “luminosas” entenda-se
munição traçante.
[3][3] Este homem era eu. Pareceu-me
mais discreto na época descrever a cena assim – um artigo de jornal no qual o
autor dissesse que ele próprio ficou banhado em sangue me faria desconfiar de
sua veracidade se eu fosse o leitor.