A Lógica Invertida de Spielberg
Louis Menand
Especial para o “NYR of Books”
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em
11 de outubro de 1998
Louis Menand é professor da Universidade de Nova York
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
“O
Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, é a história de oito soldados
estadunidenses que, depois de sobreviver ao desembarque no Dia D na praia de
Omaha, recebem ordem para encontrar um soldado, Ryan, que saltou de pára-quedas
durante a invasão e está perdido na Normandia.
Ryan
é o caçula de quatro irmãos; os outros três morreram em combate. O Exército
quer descobrir se o rapaz está vivo e, se estiver, levá-lo de volta para a sua
mãe. A patrulha de resgate se mete em situações complicadas, mas encontra o
homem e, apesar de sofrer terríveis baixas, consegue matar alguns alemães pelo
caminho.
Não
há nada incomum nessa história. É, talvez, a trama mais simples e verdadeira
que o homem conhece: salvar uma vida. É um enredo que garante derreter os mais
empedernidos: a garotinha retirada viva do poço, a libertação de reféns, a
absolvição do inocente no último instante. É Cristo ressurgindo dos mortos. Na
há público que resista. Pode-se sair do cinema revoltado com o descaramento da
coisa, mas é impossível se livrar do nó na garganta.
Existe quase um consenso de que “O Resgate do
Soldado Ryan” não é um filme convencional. Tem sido considerado uma
espécie de inovação entre os filmes de
guerra, tão diferente de realizações que já foram elogiadas pelo seu realismo –
como “Platoon”, de Oliver Stone, e “Gallipoli”, de Peter Weir – , que esses
filmes nem mesmo são citados como pontos de comparação.
As pessoas
concordam que a história é um pouco inverossímil, mas afirmam que o tratamento
dado por Spielberg não é inverossímil. Dizem que ele nos mostra, como se fosse
a primeira vez, a guerra sem pieguice ou exageros patrióticos, que substitui a
violência dos efeitos especiais exagerados por uma imagem verídica do horror e
da desumanidade da violência organizada. Essa opinião baseia-se principalmente
em duas cenas, uma logo no início do filme e outra perto do final. “O Resgate
do Soldado Ryan” começa com uma tomada da bandeira estadunidense, seguida de
uma cena curta, passada na atualidade, em que vemos um veterano visitando um
cemitério militar na Normandia.
Então, com um
corte que sugere estarmos dentro dos pensamentos desse homem, retrocedemos no
tempo para o Dia D e uma reencenação de 20 minuto do desembarque na praia de Omaha. Isso introduz à história do
Soldado Ryan, cujo clímax é outra cena de 20 minutos de combate entre soldados
estadunidenses e uma unidade de tanques alemães. Depois voltamos ao presente e
ao nosso veterano, cuja identidade, agora, conhecemos. Chorando, ele faz
continência para uma lápide. Repete-se a imagem da bandeira estadunidense.
As cenas de
batalhas, como todos concordam, são virtuosismo cinematográfico. A segunda é um
tanto sobrecarregada de incidentes: os personagens já estão totalmente
desenvolvidos, por isso não podem ser mortos com demasiada casualidade. Mas a
primeira seqüência, na praia de Omaha, não conhecemos os personagens, e a
casualidade, o caráter aleatório, da violência é precisamente o que a torna
terrível. Enquanto as balas atingem a areia ao seu redor, um homem procura numa
pilha de corpos o seu braço decepado, encontra-o e vai embora; um soldado tira
o capacete depois de escapar de uma refrega, mas no instante seguinte um tiro
lhe arranca o topo do crânio. Em “O Resgate do Soldado Ryan” não vemos homens
que simplesmente morrem; os vemos sangrar até a morte, gritando por suas mães,
com intestinos espalhados sobre a areia.
Nisso
Spielberg é um verdadeiro mago. Suas imagens tem uma rara nitidez visual e
aural, quase uma hiperclareza – são iguais à vida, com iluminação melhor. As
imagens nunca representam a confusão sendo confusas, e, mesmo quando o ruído é
quase ensurdecedor, como nas cenas de batalha em “Soldado Ryan”, os sons que o
compõe são identificáveis.
O desembarque
na praia de Omaha lembra o afogamentos do africanos em “Amistad” ou a
destruição do gueto em “A Lista de Schindler”. Dá-nos a sensação de estar
presenciando algo que não deveríamos, algo assombroso e indelével. Mas não
representa a transcendência dos efeitos dos efeitos especiais. Representa sua consumação.
É o triunfo da técnica. Isso não pretende reduzir a obra, e sim lhe dar a
devida proporção. Spielberg quis atingir um grau de realismo excepcional em
^Soldado Ryan” e conseguiu por meio de elaborados efeitos especiais (que outra
coisa poderia usar?).
Mas a serviço
de que ideia? O que o filme nos diz sobre a guerra? Que é hedionda. E também
que é nobre e necessária. A opinião geral de que “Soldado Ryan” transmite
repulsa pela guerra porque contém imagens revoltantes me parece inverter a
lógica do filme. Sempre pensei que o que torna a guerra repulsiva não é a
possibilidade de ser ferido ou morto; é a possibilidade de ferir ou matar outra
pessoa. A guerra é excepcionalmente terrível não porque destrói seres humanos,
que podem ser destruídos aos montes de outras maneiras, mas porque transforma
os seres humanos em destruidores.
Há várias
mortes revoltantes em “Soldado Ryan”, mas são todas elas mortes estadunidenses.
Quando os alemães são atingidos, caem como pinos de boliche e não levantam. As
mortes deles são mortes de cinema. E, quanto mais agônico é o sofrimento dos
estadunidenses, mais nos alegramos ao ver a chacina dos alemães. O realismo
apenas intensifica o entusiasmo.
Duvido que
fosse a intenção de Spielberg, e a disjunção entre o objetivo e o resultado
revela o maior problema do tipo de filme que ele deseja fazer hoje. Ele quer
que o público vivencie, quando está habituado meramente a reagir. Ele quer dar
o seu testemunho numa mídia feita para diversão da massa. A incongruência
sobressai na diferença entre a reação da maioria dos críticos a “O Resgate do
Soldado Ryan” e a reação dos expectadores pagantes. Os críticos costumam
assistir a filmes em salas especiais. É como assisti-los numa igreja. Todos
estão concentrados; ninguém se levanta para comprar pipoca ou procura balas na
bolsa. O público dessas salas não reage ao filme.
Mas o dos
cinemas sim. Vi “Soldado Ryan” numa grande sala no centro de Manhattan, num
sábado à noite, um dia depois da estréia, com cerca de 200 pessoas. Não eram
espectadores desavisados, em busca de emoções baratas. Haviam lido críticas,
estavam preparados para serem influenciados.
Na metade do
filme há uma cena em que um membro especialmente simpático da patrulha de
resgate (na verdade são todos simpáticos) se esvai em sangue, com evidente
sofrimento, durante o ataque a um ninho de metralhadora alemão, perdido num
campo francês. Depois que o soldado morre, seus companheiros correm até a
posição inimiga e espancam o único sobrevivente alemão, que tenta
freneticamente se render. Um tímido interprete que acompanha a patrulha e nunca
havia visto um combate se opõe histericamente àquela brutalidade. “O que é
isso?”, ele grita aos companheiros estadunidenses enquanto o apavorado alemão
choraminga. “Isso se chama guerra”, disse o homem sentado à minha direita (que
antes estivera chorando) para ninguém especial. Mais adiante o interprete se vê
confrontado com a possibilidade de matar um soldado alemão. “Mate-o”, gritou
uma mulher na platéia à minha frente, expressando claramente o sentimento de
toda a casa.
Isso não
significa que “Soldado Ryan” seja pior que a maioria dos filmes de guerra de
Hollywood, em que os heróis matam os bandidos, sob nosso aplauso, e morrem por
causas justas, para nosso pesar. Significa apenas que, nesse sentido, “Soldado
Ryan” em nada difere da maioria dos filmes de guerra de Hollywood. Os heróis de
Spielberg, liderados por Tom Hanks, são mais palpáveis e suas mortes são, por
assim dizer, mais verídicas.
Mas, apesar de
sua maneira naturalista, são quase exagerados quando o coronel de Robert
Duvalll em “Apocaliypse Now” que voa para a batalha escutando “A Cavalgada das
Valquírias’ e exprime seu desprezo pelo inimigo com a fala – uma das mais
cinematográficas de todos os tempos – “Charlie don’t surf”. Não há menos
ambigüidade em “O Resgate do Soldado Ryan” do que havia em “O Mais Longo do
Dias”.
Para ser
justo, os cineastas realmente se esforçam. A história do soldado Ryan pretende
levantar a questão ética: está certo arriscar oito vidas para salvar uma? A
patrulha discute essa questão até certo ponto. Mas quão complexa ela pode ser?
Se os soldados não lutarem pela “mãe”, lutarão por quê? Nenhum dos homens
realmente acredita que sua missão seja fútil, e o roteiro não seria verossímil
se deixasse dúvida nesse sentido. Quando não estão falando da guerra, eles
conversam sobre suas famílias e suas mães – que, obviamente, é a forma pela
qual compreendem a importância maior de sua missão. Lutar para devolver o único
filho que resta a uma mãe atormentada é mil vezes mais concreto do que lutar
para libertar a França e 10 mil vezes mais favorável à emoção cinematográfica.
Se os soldados
conseguirem libertar alguns franceses durante a missão, tanto melhor. Mas o que
significa a França para eles ( e para nós, nessa caso?). O que a França é para
uma mãe?
Havia maneiras
de fazer a história do soldado Ryan ter algum peso moral plausível. Uma seria
ter feito de Ryan, quando finalmente é encontrado, um personagem de proporções
menos admiráveis. Nesse filme, evidentemente, ele é tão inocente e nobre que
recusa a oferta de voltar para casa; comovido pela notícia sobre seus irmãos,
decide ficar e enfrentar a morte ao lado dos camaradas. É esse tipo de filme. A
possibilidade de que Ryan pudesse ser um objeto indigno de coragem e sacrifício
nunca foi cogitada, é claro.
A outra opção
seria fazer da missão um produto de corrupção de calculismo – colocar os
soldados na condição de ter de fazer a coisa certa pelo motivo errado, fazê-los
sofrer e morrer para algum general vaidoso ou ambicioso burocrata no
quartel-general subisse na carreira. Essa possibilidade é tão óbvia que os
realizadores de “Soldado Ryan” parecem ter feito questão de recusá-la.
O conflito
entre soldados e oficiais é uma constante nas histórias de guerra, assim como o
conflito entre delegados e detetives é uma constante nas histórias policiais. A
coragem das pessoas na linha de gente é realçada pelo egoísmo e incompetência
das pessoas que os comandam. A dramatização desse conflito é perfeitamente
compatível com certo estilo de patriotismo – é a única premissa nos filmes de
Rambo. Quando Tom Hanks, no início do filme, re refere à missão como um
exercício de relações públicas, está demonstrando o exato grau de cinismo que
se espera de um duro e honrado capitão do Exército. Mas não passa disso, nem o
poderia sem prejudicar a força de seu personagem. Porque já sabemos que surgiu
a idéia da missão e que não envolvia qualquer cinismo.
Essa parte do
filme me parece superar Capra. Uma funcionária pública em Washington, chefe da
equipe que datilografa cartas para as famílias anunciando a morte de seus entes
queridos na guerra, percebe que havia enviado três cartas para a mesma Sra.
Ryan (que, é claro, mora em uma fazenda em Iowa). A supervisora civil informa
seu superior de uniforme, que informa seu superior de uniforme (e sabemos que
não se trata de um burocrata porque lhe falta um braço), e ambos avisam ao
chefe do Estado –Maior do Exército, General George C. Marshal em pessoa, com a
respeitosa recomendação de que o sobrevivente do jovens Ryan seja localizado e
removido do combate.
O general
concorda. Um assessor começa a resmungar que “não se pode parar uma guerra por
causa de um soldado” e assim por diante, mas o grande homem ergue a mão. Vai
até sua mesa, pega uma carta que por acaso acabara de enfiar num livro e começa
a ler. É uma carta grave e comovente para uma mulher cujos cinco filhos
morreram em combate. No meio da leitura, Marshal pousa a carta e recita de
cor as frases finais e diz o nome do
signatário: Abraham Lincoln. E assim, engolimos um grande, um enorme anzol.
A Segunda
Guerra Mundial foi a luta contra um mal que não precisamos pintar em tons de
cinza, mesmo que se deseje retratar individualmente combatentes inimigos, e os
estadunidenses que nela morreram merecem nossa reverência. Mas aqui não estamos
julgando a Segunda Guerra Mundial; estamos julgando um filme. Desde que
Spielberg optou pela seriedade, em “A Lista de Schindler”, ele vem trabalhando
numa espécie de terra de ninguém entre o entretenimento e a arte.
Os grandes
espetáculos de Hollywood sobre temos históricos quase sempre foram
manipuladores e não demonstram muito embaraço a esse respeito. Os cineastas
procuram instigar o público porque o público quer ser instigado. Ele quer
torcer, chorar e comprar pipoca. O sentimentalismo é um pressuposto dessa
experiência e, embora detalhes omitidos e os clímax forjados possam ser de uma
desonestidade irritante, na verdade são a manifestação de uma honestidade mais
profunda.
Lembram-nos
que estamos sendo iludidos porque fomos buscar distração; portanto não estamos
sendo enganados. E, não raro, apesar da ilusão e da pieguice, brota desses
filmes algum tipo de verdade, mesmo que seja a que vislumbra de tanto ver nossa
realidade falsificada. Mas essa verdade nunca é um sentimento moral explícito.
Esse sentimento é mera adulação: o que as platéias querem ser levadas a pensar
é o que já pensam. Ninguém veio em busca de polêmica.
Uma ambição da
arte é fazer as pessoas pensarem o que não pensavam, ou o que já pensavam sem
realmente se dar conta, e o grande problema de Spielberg como cineasta é que
ele jamais permite que seu público pense. Só permite que ele sinta. Parece
insistir que é o único entre todos os diretores de Hollywood que faz justiça a
seus temas, mas que não pode simplesmente os apresentar de graça.
Ele exige
nossa constante cumplicidade emocional em troca de sua fidelidade. Parece
acreditar que, caso deixe o anzol escapar por um segundo de nossas bocas,
teremos a idéia errada sobre os nazistas ou a escravidão. Ele não deixa nada ao
acaso. Põe música por trás de tudo. Se conseguisse respeitar um pouco menos
seus temas ou um pouco mais seu público, faria filmes melhores.