Tuesday, January 29, 2013

A Lógica Invertida de Spielberg


A Lógica Invertida de Spielberg

Louis Menand
Especial para o “NYR of Books”
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
Louis Menand é professor da Universidade de Nova York
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves






            “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, é a história de oito soldados estadunidenses que, depois de sobreviver ao desembarque no Dia D na praia de Omaha, recebem ordem para encontrar um soldado, Ryan, que saltou de pára-quedas durante a invasão e está perdido na Normandia.
            Ryan é o caçula de quatro irmãos; os outros três morreram em combate. O Exército quer descobrir se o rapaz está vivo e, se estiver, levá-lo de volta para a sua mãe. A patrulha de resgate se mete em situações complicadas, mas encontra o homem e, apesar de sofrer terríveis baixas, consegue matar alguns alemães pelo caminho.
            Não há nada incomum nessa história. É, talvez, a trama mais simples e verdadeira que o homem conhece: salvar uma vida. É um enredo que garante derreter os mais empedernidos: a garotinha retirada viva do poço, a libertação de reféns, a absolvição do inocente no último instante. É Cristo ressurgindo dos mortos. Na há público que resista. Pode-se sair do cinema revoltado com o descaramento da coisa, mas é impossível se livrar do nó na garganta.
            Existe  quase um consenso de que “O Resgate do Soldado Ryan” não é um filme convencional. Tem sido considerado uma espécie  de inovação entre os filmes de guerra, tão diferente de realizações que já foram elogiadas pelo seu realismo – como “Platoon”, de Oliver Stone, e “Gallipoli”, de Peter Weir – , que esses filmes nem mesmo são citados como pontos de comparação.
As pessoas concordam que a história é um pouco inverossímil, mas afirmam que o tratamento dado por Spielberg não é inverossímil. Dizem que ele nos mostra, como se fosse a primeira vez, a guerra sem pieguice ou exageros patrióticos, que substitui a violência dos efeitos especiais exagerados por uma imagem verídica do horror e da desumanidade da violência organizada. Essa opinião baseia-se principalmente em duas cenas, uma logo no início do filme e outra perto do final. “O Resgate do Soldado Ryan” começa com uma tomada da bandeira estadunidense, seguida de uma cena curta, passada na atualidade, em que vemos um veterano visitando um cemitério militar na Normandia.
Então, com um corte que sugere estarmos dentro dos pensamentos desse homem, retrocedemos no tempo para o Dia D e uma reencenação de 20 minuto do desembarque  na praia de Omaha. Isso introduz à história do Soldado Ryan, cujo clímax é outra cena de 20 minutos de combate entre soldados estadunidenses e uma unidade de tanques alemães. Depois voltamos ao presente e ao nosso veterano, cuja identidade, agora, conhecemos. Chorando, ele faz continência para uma lápide. Repete-se a imagem da bandeira estadunidense.
As cenas de batalhas, como todos concordam, são virtuosismo cinematográfico. A segunda é um tanto sobrecarregada de incidentes: os personagens já estão totalmente desenvolvidos, por isso não podem ser mortos com demasiada casualidade. Mas a primeira seqüência, na praia de Omaha, não conhecemos os personagens, e a casualidade, o caráter aleatório, da violência é precisamente o que a torna terrível. Enquanto as balas atingem a areia ao seu redor, um homem procura numa pilha de corpos o seu braço decepado, encontra-o e vai embora; um soldado tira o capacete depois de escapar de uma refrega, mas no instante seguinte um tiro lhe arranca o topo do crânio. Em “O Resgate do Soldado Ryan” não vemos homens que simplesmente morrem; os vemos sangrar até a morte, gritando por suas mães, com intestinos espalhados sobre a areia.
Nisso Spielberg é um verdadeiro mago. Suas imagens tem uma rara nitidez visual e aural, quase uma hiperclareza – são iguais à vida, com iluminação melhor. As imagens nunca representam a confusão sendo confusas, e, mesmo quando o ruído é quase ensurdecedor, como nas cenas de batalha em “Soldado Ryan”, os sons que o compõe são identificáveis.
O desembarque na praia de Omaha lembra o afogamentos do africanos em “Amistad” ou a destruição do gueto em “A Lista de Schindler”. Dá-nos a sensação de estar presenciando algo que não deveríamos, algo assombroso e indelével. Mas não representa a transcendência dos efeitos dos efeitos especiais. Representa sua consumação. É o triunfo da técnica. Isso não pretende reduzir a obra, e sim lhe dar a devida proporção. Spielberg quis atingir um grau de realismo excepcional em ^Soldado Ryan” e conseguiu por meio de elaborados efeitos especiais (que outra coisa poderia usar?).
Mas a serviço de que ideia?  O que o filme nos diz sobre a guerra? Que é hedionda. E também que é nobre e necessária. A opinião geral de que “Soldado Ryan” transmite repulsa pela guerra porque contém imagens revoltantes me parece inverter a lógica do filme. Sempre pensei que o que torna a guerra repulsiva não é a possibilidade de ser ferido ou morto; é a possibilidade de ferir ou matar outra pessoa. A guerra é excepcionalmente terrível não porque destrói seres humanos, que podem ser destruídos aos montes de outras maneiras, mas porque transforma os seres humanos em destruidores.
Há várias mortes revoltantes em “Soldado Ryan”, mas são todas elas mortes estadunidenses. Quando os alemães são atingidos, caem como pinos de boliche e não levantam. As mortes deles são mortes de cinema. E, quanto mais agônico é o sofrimento dos estadunidenses, mais nos alegramos ao ver a chacina dos alemães. O realismo apenas intensifica o entusiasmo.
Duvido que fosse a intenção de Spielberg, e a disjunção entre o objetivo e o resultado revela o maior problema do tipo de filme que ele deseja fazer hoje. Ele quer que o público vivencie, quando está habituado meramente a reagir. Ele quer dar o seu testemunho numa mídia feita para diversão da massa. A incongruência sobressai na diferença entre a reação da maioria dos críticos a “O Resgate do Soldado Ryan” e a reação dos expectadores pagantes. Os críticos costumam assistir a filmes em salas especiais. É como assisti-los numa igreja. Todos estão concentrados; ninguém se levanta para comprar pipoca ou procura balas na bolsa. O público dessas salas não reage ao filme.
Mas o dos cinemas sim. Vi “Soldado Ryan” numa grande sala no centro de Manhattan, num sábado à noite, um dia depois da estréia, com cerca de 200 pessoas. Não eram espectadores desavisados, em busca de emoções baratas. Haviam lido críticas, estavam preparados para serem influenciados.
Na metade do filme há uma cena em que um membro especialmente simpático da patrulha de resgate (na verdade são todos simpáticos) se esvai em sangue, com evidente sofrimento, durante o ataque a um ninho de metralhadora alemão, perdido num campo francês. Depois que o soldado morre, seus companheiros correm até a posição inimiga e espancam o único sobrevivente alemão, que tenta freneticamente se render. Um tímido interprete que acompanha a patrulha e nunca havia visto um combate se opõe histericamente àquela brutalidade. “O que é isso?”, ele grita aos companheiros estadunidenses enquanto o apavorado alemão choraminga. “Isso se chama guerra”, disse o homem sentado à minha direita (que antes estivera chorando) para ninguém especial. Mais adiante o interprete se vê confrontado com a possibilidade de matar um soldado alemão. “Mate-o”, gritou uma mulher na platéia à minha frente, expressando claramente o sentimento de toda a casa.
Isso não significa que “Soldado Ryan” seja pior que a maioria dos filmes de guerra de Hollywood, em que os heróis matam os bandidos, sob nosso aplauso, e morrem por causas justas, para nosso pesar. Significa apenas que, nesse sentido, “Soldado Ryan” em nada difere da maioria dos filmes de guerra de Hollywood. Os heróis de Spielberg, liderados por Tom Hanks, são mais palpáveis e suas mortes são, por assim dizer, mais verídicas.
Mas, apesar de sua maneira naturalista, são quase exagerados quando o coronel de Robert Duvalll em “Apocaliypse Now” que voa para a batalha escutando “A Cavalgada das Valquírias’ e exprime seu desprezo pelo inimigo com a fala – uma das mais cinematográficas de todos os tempos – “Charlie don’t surf”. Não há menos ambigüidade em “O Resgate do Soldado Ryan” do que havia em “O Mais Longo do Dias”.
Para ser justo, os cineastas realmente se esforçam. A história do soldado Ryan pretende levantar a questão ética: está certo arriscar oito vidas para salvar uma? A patrulha discute essa questão até certo ponto. Mas quão complexa ela pode ser? Se os soldados não lutarem pela “mãe”, lutarão por quê? Nenhum dos homens realmente acredita que sua missão seja fútil, e o roteiro não seria verossímil se deixasse dúvida nesse sentido. Quando não estão falando da guerra, eles conversam sobre suas famílias e suas mães – que, obviamente, é a forma pela qual compreendem a importância maior de sua missão. Lutar para devolver o único filho que resta a uma mãe atormentada é mil vezes mais concreto do que lutar para libertar a França e 10 mil vezes mais favorável à emoção cinematográfica.
Se os soldados conseguirem libertar alguns franceses durante a missão, tanto melhor. Mas o que significa a França para eles ( e para nós, nessa caso?). O que a França é para uma mãe?
Havia maneiras de fazer a história do soldado Ryan ter algum peso moral plausível. Uma seria ter feito de Ryan, quando finalmente é encontrado, um personagem de proporções menos admiráveis. Nesse filme, evidentemente, ele é tão inocente e nobre que recusa a oferta de voltar para casa; comovido pela notícia sobre seus irmãos, decide ficar e enfrentar a morte ao lado dos camaradas. É esse tipo de filme. A possibilidade de que Ryan pudesse ser um objeto indigno de coragem e sacrifício nunca foi cogitada, é claro.
A outra opção seria fazer da missão um produto de corrupção de calculismo – colocar os soldados na condição de ter de fazer a coisa certa pelo motivo errado, fazê-los sofrer e morrer para algum general vaidoso ou ambicioso burocrata no quartel-general subisse na carreira. Essa possibilidade é tão óbvia que os realizadores de “Soldado Ryan” parecem ter feito questão de recusá-la.
O conflito entre soldados e oficiais é uma constante nas histórias de guerra, assim como o conflito entre delegados e detetives é uma constante nas histórias policiais. A coragem das pessoas na linha de gente é realçada pelo egoísmo e incompetência das pessoas que os comandam. A dramatização desse conflito é perfeitamente compatível com certo estilo de patriotismo – é a única premissa nos filmes de Rambo. Quando Tom Hanks, no início do filme, re refere à missão como um exercício de relações públicas, está demonstrando o exato grau de cinismo que se espera de um duro e honrado capitão do Exército. Mas não passa disso, nem o poderia sem prejudicar a força de seu personagem. Porque já sabemos que surgiu a idéia da missão e que não envolvia qualquer cinismo.
Essa parte do filme me parece superar Capra. Uma funcionária pública em Washington, chefe da equipe que datilografa cartas para as famílias anunciando a morte de seus entes queridos na guerra, percebe que havia enviado três cartas para a mesma Sra. Ryan (que, é claro, mora em uma fazenda em Iowa). A supervisora civil informa seu superior de uniforme, que informa seu superior de uniforme (e sabemos que não se trata de um burocrata porque lhe falta um braço), e ambos avisam ao chefe do Estado –Maior do Exército, General George C. Marshal em pessoa, com a respeitosa recomendação de que o sobrevivente do jovens Ryan seja localizado e removido do combate.
O general concorda. Um assessor começa a resmungar que “não se pode parar uma guerra por causa de um soldado” e assim por diante, mas o grande homem ergue a mão. Vai até sua mesa, pega uma carta que por acaso acabara de enfiar num livro e começa a ler. É uma carta grave e comovente para uma mulher cujos cinco filhos morreram em combate. No meio da leitura, Marshal pousa a carta e recita de cor  as frases finais e diz o nome do signatário: Abraham Lincoln. E assim, engolimos um grande, um enorme anzol.
A Segunda Guerra Mundial foi a luta contra um mal que não precisamos pintar em tons de cinza, mesmo que se deseje retratar individualmente combatentes inimigos, e os estadunidenses que nela morreram merecem nossa reverência. Mas aqui não estamos julgando a Segunda Guerra Mundial; estamos julgando um filme. Desde que Spielberg optou pela seriedade, em “A Lista de Schindler”, ele vem trabalhando numa espécie de terra de ninguém entre o entretenimento e a arte.
Os grandes espetáculos de Hollywood sobre temos históricos quase sempre foram manipuladores e não demonstram muito embaraço a esse respeito. Os cineastas procuram instigar o público porque o público quer ser instigado. Ele quer torcer, chorar e comprar pipoca. O sentimentalismo é um pressuposto dessa experiência e, embora detalhes omitidos e os clímax forjados possam ser de uma desonestidade irritante, na verdade são a manifestação de uma honestidade mais profunda.
Lembram-nos que estamos sendo iludidos porque fomos buscar distração; portanto não estamos sendo enganados. E, não raro, apesar da ilusão e da pieguice, brota desses filmes algum tipo de verdade, mesmo que seja a que vislumbra de tanto ver nossa realidade falsificada. Mas essa verdade nunca é um sentimento moral explícito. Esse sentimento é mera adulação: o que as platéias querem ser levadas a pensar é o que já pensam. Ninguém veio em busca de polêmica.
Uma ambição da arte é fazer as pessoas pensarem o que não pensavam, ou o que já pensavam sem realmente se dar conta, e o grande problema de Spielberg como cineasta é que ele jamais permite que seu público pense. Só permite que ele sinta. Parece insistir que é o único entre todos os diretores de Hollywood que faz justiça a seus temas, mas que não pode simplesmente os apresentar de graça.
Ele exige nossa constante cumplicidade emocional em troca de sua fidelidade. Parece acreditar que, caso deixe o anzol escapar por um segundo de nossas bocas, teremos a idéia errada sobre os nazistas ou a escravidão. Ele não deixa nada ao acaso. Põe música por trás de tudo. Se conseguisse respeitar um pouco menos seus temas ou um pouco mais seu público, faria filmes melhores.

Monday, January 28, 2013

A Materialidade do Medo


A Materialidade do Medo

Mario Vitor Santos
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998


No início e no fim de “O Resgate do Soldado Ryan”, o ex-combatente James Ryan (Matt Damon) visita, nos dias atuais, o túmulo do Capitão Miller (Tom Hanks), comandante morto na missão que dá título ao filme. À distância, intrigada, a família – mulher, filhos, netos – parece incapaz de entender o choro compulsivo, incontrolável de Ryan.
A cinde a tela: de um lado, os Estados Unidos, passivo, infantil e parvo, que nunca foi bombardeado ou invadido, a opinião pública que decide e dá apoio às ações estadunidenses no exterior. Do outro, os Estados Unidos que sobrevivei à Segunda Guerra Mundial, ainda em choque diante dos horrores daquele conflito, traumaticamente transformado por ele, como a Europa. Dois mundos que não se comunicam...
Parte da crítica internacional recebeu o filme com reservas, alegando que ele passa uma ideia arrogante, historicamente incorreta, de que só os estadunidenses entraram na campanha. É questionável, porém, se seria correto continuar classificando de “estadunidenses”, no sentido estrito, os soldados que entraram no corpo-a-corpo da guerra na Europa, da África e do Pacífico.
Os Estados Unidos inocente saudou o “Resgate”. Spielberg recebeu do Exército a mais alta medalha militar que um civil pode merecer. Apesar disso, o filme, especialmente em sua primeira hora, rompe o cordão sanitário criado em torno da guerra pelos oficiais de relações públicas do comando estadunidense.
São raras as descrições da Segunda Guerra que guardam a mínima correspondência com a crueza de um combate. O “Resgate” é dos poucos filmes a tratar do assunto com realismo, conferindo ao medo uma materialidade extrema. É uma obra dos sentidos, da visão, da audição (ou da surdez) e até do tato e do olfato.
O filme trafega da monumentalidade do horror, nas sequências das pilhas de corpos e partes de corpos no desembarque da Normandia, ao tédio e ignorância dos soldados, sua solidão e privações e a falta de sentido de suas ações.
No “front interno”, durante e depois da guerra, sua experiência era contada de maneira sistematicamente falsa e adocicada, para sempre deformada pela publicidade otimista.
Naquele que talvez seja o melhor livro já escrito sobre o assunto, “Wartime – Understanding na Behavior in the Second World War” (Tempo de Guerra – Entendimento e Comportamento na Segunda Guerra Mundial, Oxford University Press), o escritor e ex-tenente estadunidense Paul Fussel, participante do ataque na Normandia, trata da inocência em que o público era mantido em relação aos danos bizarros que a guerra causa aos corpos dos soldados.
Esperava-se que o corpo humano fosse atingido por balas e bombas, mas o alheamento era tal, lembra Fussel, que não se concebia que s soldados pudessem ser feridos, algumas vezes mortos, ao sofrerem o impacto violento de partes dos corpos de seus amigos retalhados por uma explosão.
Na era do eufemismo, as tropas aliadas raramente eram mostradas como vítimas de amputações traumáticas, apesar de os formulários individuais dos combatentes trazerem, junto aos dados como nome, idade e endereço, o espaço destinado a informar “membros perdidos’.
Nos combates, como nos acidentes aéreos, a visão das entranhas é muito mais familiar do que se imagina, ou se imaginava, antes da primeira hora do filme de Spielberg. Depois de edulcorar a Segunda Guerra por mais de cinco décadas, Hollywood afinal consegue encarar a verdade.
Truques de publicidade como os que adocicam a realidade dos conflito poderiam ter se repetido na Guerra do Vietnã caso a televisão e um jornalismo destemido e livre da censura não existissem.
O filme é atual porque as guerras recentes tentam retornar algumas teses da Segunda Guerra Mundial. Na Guerra do Golfo (aprofundando algo que já havia sido ensaiado na invasão do Panamá), o Estado-Maior estadunidense e “aliado” logrou reassumir o controle perdido das informações no Vietnã.
O comando restringiu o acesso dos jornalistas ao conflito, bloqueou imagens realistas, difundiu de novo a noção, comum no início da Segunda Guerra, de que os ataques de “bombas inteligentes” podem produzir impactos precisos, que aniquilam exclusivamente soldados inimigos, mantendo os próprios soldados a distância segura de qualquer perigo.
Apesar de suas referências e cunho patriótico, “O Resgate do Soldado Ryan” anima futuros objetores de consciência. Talvez o Exército estadunidense tenha se precipitado em dar uma medalha ao diretor hollywoodiano.
De acordo com Paul Fussel, os Estados Unidos até hoje não entendeu como foi a Segunda Guerra Mundial e por isso tem sido incapaz de usar esse entendimento para reinterpretar e redefinir a realidade nacional e assim chegar a alguma coisa próxima do que seja a maturidade pública.
Nas cenas do cemitério, o ex-soldado Ryan pode estar chorando pelo que passou na guerra, pelo sacrifício dos homens que o salvaram, mas talvez chore também por saber que, daquele inicático encontro dos EUA com a dor, da solidão daí decorrente, ele jamais será resgatado.

Um Campo de Sangue


Um Campo de Sangue

Charles Weeler
Para o “The Independent on Sunday”
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
Tradução de José Marcos Macedo



Será que a chaga à praia de Omaha aconteceu mesmo como Spielberg descreveu? Tem fundamento a legação de que o diretor contou a história como ela realmente ocorreu? Em termos gerais, sim. Eu esperava, porém, que um cineasta na posse de recursos tão vultosos pensasse ser interessante dar algum contexto a sua história do desembarque, contando-nos não apenas o que aconteceu, mas a razão. Por que, por exemplo, foi necessário desembarcar tropas naquele exato ponto da costa?
A resposta, curta e grossa, é que os mentores do Dia D, não tinham escolha. A praia que foi apelidada de Omaha era a única brecha em 32km de penhascos que separavam as três praias inglesas e canadenses, a leste, as segunda praia estadunidense, Utah, no extremo ocidente da área de invasão. Sem Omaha, a distância entre os dois exércitos aliados teria convidado os alemães a contra-atacar, o que poderia repelir a invasão e prolongar a guerra na Europa por mais alguns anos.
A topografia de Omaha era ideal para a defesa. Nos dois extremos, os penhascos eram quase perpendiculares. Na maré média, um trecho de areia firme conduzia a uma saliência de seixo pesado, instransponível por veículos, e a um quebra-mar de 4,5m de altura, crivado de arame farpado. Transpondo o muro, havia uma estrada calçada, um profundo fosso antitanque,  um trecho de pântano  e uma subida íngreme até uma rede de trincheiras, em terreno elevado.
Uma combinação mortal de defesas naturais e artificiais fez de Omaha um campo de mortandade. O marechal-de-campo Rommel, que planejara a construção de um Muro Atlântico alemão desde janeiro de 1944, abastecerá Omaha com o maior número de obstáculos aquáticos de toda a costa da Normandia, a começar por um labirinto de estacas minadas e obstáculos angulares de aço para atuar como barreiras aos tanques e veículos de desembarque. Dominando a praia, e posicionadas para varrer cada centímetro quadrado de baixios, areia e seixos com fogo cruzado, estavam armas de 88mm e 75mm em casamatas de concreto, 38 barreiras de foguetes, seis poços multicilíndricos de morteiros e não menos que 84 ninhos de metralhadoras.
Quatro desfiladeiros formavam saídas da praia. No Dia D, eles estavam minados, eriçados de arame farpado e protegidos por 35 casamatas com soldados de infantaria armados de rifles, granadas e metralhadoras. Atiradores de elite jaziam escondidos, em intervalos. E havia mais defesas continente adentro.
No dia, parte do plano falhou e o resto não funcionou. O bombardeio naval foi muito breve e impreciso para propiciar ajuda significativa. A força aérea, temendo atingir os veículos de desembarque a meio caminho, lançaram suas bombas em campos até 8km para o interior, matando vacas em vez de soldados alemães. O almirante, preocupado em não ancorar seus navios dentro do alcance da artilharia alemã e ignorando o mar revolto e a falta de proteção contra o mau tempo, lançou seus veículos de desembarque a 30km da costa, forçando as tropas a suportar uma travessia inconcebivelmente ingrata e, por si só, subjugante, até a praia.
Embarcados na escuridão, às 3h, dez carregamentos, cada um com 300 homens, fizeram água e afundaram; 26 armamentos pesados foram direto para o leito do mar em seus veículos anfíbios, chamados de DUKWs. De 32 tanques anfíbios designados para uma divisão estadunidense, com ordens de abrir caminho para a saída da praia, 29 foram a pique. Sua perda aumentaria em centenas o número de mortos.
À espera dos estadunidenses não estava uma única divisão de segunda classe, como os mentores esperavam, mas duas. Ignoradas pela inteligência aliada, novas tropas da frente russa, tendo chegado à costa apenas alguns dias antes, haviam acabado de realizar exercícios anti-invasão. Quando a primeira linha de veículos de desembarque atingiu águas rasas, os defensores abriram fogo, matando inúmeros estadunidenses cruelmente mareados antes mesmo de poderem desembarcar.
Soldados de infantaria, com até 30kg de equipamentos nas costas, saltaram em águas profundas e se afogaram. Minutos depois, a praia era uma mixórdia de veículos de desembarque destroçados, carros de assaltos encalhados e homens feridos e moribundos. Uma guarnição perdeu 96% de seu efetivo antes de disparar um único tiro.
As defesas de Omaha eram simplesmente muito fortes para as forças enviadas contra elas, e muitos daquelas que alcançaram o topo da praia, suas armas perdidas ou emperradas com areia, amontoaram-se contra o quebra-mar durante horas, sem líder e em estado de choque. A coisa piorava à medida que sucessivas ondas de soldados da infantaria eram abatidas.
Dois fatores salvaram o dia. Um par de destróieres aproximou-se o bastante pra roçar a areia e disparar a queima-roupa nas fortificações alemãs. E alguns homens valorosos, notando ser impossível bater em retirada, reagruparam em número suficiente de companheiros para lançar um ataque aos postos elevados e atacar as posições inimigas pela retaguarda. À tarde, apesar dos reveses, fora feita uma cabeça-de-ponte.
E aí voltamos para “O Resgate do Soldado Ryan”, cortando a imagem dos soldados em paz eterna sobre a praia de Omaha para Washington, onde o General George Marshal, chefe do Estado-Maior do Exercido dos Estado Unidos, descobriu que três irmãos foram mortos em ação com intervalos de poucos dias, enquanto um quarto, esperava-se que ainda vivo, James Ryan, está em algum lugar na Normadia, desembarcando na França por sua divisão aérea. Marshal ordena uma missão de resgate.
Esse expediente é francamente inacreditável. Pode-se imaginar que uma mensagem de rádio ao comandante de Ryan – para qualquer unidade a que o soldado Ryan, se perdido, poderia estar agregado – seria o suficiente. Mas isso teria acabado com todo romantismo do roteiro.

Tuesday, January 22, 2013

As coisas como deveriam ser - Parte 1 - Blowtorch

Lança-chamas M2-2 com sua caixa
A arma: lança-chamas

     Reinaugurando as postagens no blog, transfiro para cá minha série As Coisas Como Deveriam Ser.
     Várias figuras lançadas tanto no Brasil quanto nos EUA, só no Brasil ou só nos EUA, concordamos que poderiam ser melhores. O Blowtorch é um bom exemplo: quem quer em campo de combate, selva, urbano deserto ou ártico, um soldado de parece um alvo com todo esse amarelo e vermelho? Céus, o cara é uma marca no campo de batalha!
     E vale lembrar que na Segunda Guerra Mundial esse caras com o tanque de combustível nas costas era alvos preferenciais, pois levavam vários companheiros quando explodiam em campo. Eram chamados de Zippo, em homenagem ao isqueiro.
     O uso do fogo como arma é tão antigo quanto sua descoberta, embora muitos afirmem que isso seja somente especulação. No entanto, flechas flamejantes, fogo grego, e tantos outros artefatos incendiário são constantemente descritos historicamente. 
"Aparato Portátil de Trincheira" da Primeira Guerra Mundias, também conhecido como "Protetor de Chamas" ou Lançador de Chamas". Esta foto aprensenta muitos pontos interessantes, a destacar: 1) Os dois pontos de spray estão em posições opostas, sigificando que a peça toda era colocada dentro ou sobre a trincheira; 2) Não há uma garrafa de pressão visível; 3) a vara e a mangueira são muito pequenas para uma descarga adequada; 4) Os tanques são extremamente grandes e provavelmente muito, muito pesados quando carregados; 5) as mangueiras de descarga à esquerda e à frente do operador tornam impossível escalar e muito difícil andar. Foto AMCCOM Historical Office, American University.
     Os primeiros lança-chamas foram testados por ingleses e alemães na Primeira Guerra Mundial. Mas somente durante a Segunda Guerra Mundial a tecnologia estava realmente disponível, e em cenários adequados, para que um lança-chamas fosse realmente útil como arma de infantaria. 
Teste de lança-chamas pelo Exército do Império Alemão, 1901
     Nas verdade, os alemães começaram a desenvolver os lança-chamas antes do início do conflito de 1914, desenvolvendo e usando muitos modelos. Os lança-chamas foram desenvolvidos como armas de choque para quebrar e penetrar o sistema defensivo de trincheiras. As tropas de choque  empregavam os lança-chamas em conjunto com granadas e armas automáticas, como uma prévia do que seria uma ataque de Blitzkrieg da Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro uso data de 1915 pelo Exército Imperial Alemão. Os testes remontam a 1901.
     Dessa forma, é natural que tal arma tivesse feito parte de arsenais de todos os lados na Segunda Guerra Mundial, embora já no começo a experiência anterior tenha munido os alemãs com excelentes modelos de lança-chamas e tropas muito experientes no seu uso.
Lança-chamas M1
Lança-chamas M2-2


     No entanto, os estadunidenses foram seus mais notórios usuários, principalmente na campanha do Pacífico, onde era o método preferencial para desentocar os combatentes japoneses de bunkers quando este insistiam em não sair de lá. É fato, no entanto, que os soldados estadunidenses não pediam muitas vezes para que os combatentes japoneses saíssem ou quiça esperassem muito tempo para fazer logo seu trabalho e ir para o próximo bunker. Foi um período de crueldade de ambos os lados.
Lança-chamas M2A1-2 - Réplica usada em encenações.
     Os EUA não desenvolveram lança-chamas na WWI e nem no período entre guerras, sequer fizeram pesquisas até sua entrada na WWII. Até esse ponto, a Kincaid Fire Extinqisher Co teve 90 dias para desenvolver o M1. Este foi um enorme fracasso, e foi feito um grande investimento em pesquisa e desenvolvimento do segundo modelo, o M2. O M2 acabou sendo o mais marcante lança-chamas do conflito, ainda mais pelo M2-2 ter sido pesquisado e desenvolvido em um período de tempo tão curto pela indústria, universidades, ramos do Exército e várias características foram copiadas de outros países. Muito da informação necessária para compilar toda a história do desenvolvimento se dispersou e foi perdida. Cada um dos poucos livros sobre lança-chamas requerem esforço monumental para recriar a informação.
     Mas voltando ao teatro de operações do Pacífico, foi somente lá que os Marines, encontrando um inimigo altamente determinado e entrincheirado, que o lança-chamas se mostrou a arma mais efetiva para o terreno e o uso tático a que se destina. Os Marines rapidamente desenvolverem a técnica e as táticas de uso, e seu uso foi um sucesso contra os japoneses.
     Na Europa, as distâncias de combate eram muito maiores e com menos vegetação que pudesse ser usada para se esconder. O alcance curto do lança-chamas (o M1 atingia 15 metros, o M2-2, 20 metros), mesmo tendo modelos que podiam ser montados em veículos, o lança-chamas era usado em casos isolados e ficava na retaguarda até que tais casos surgissem. Surpreendentemente, próximo ao fim da guerra, o General Patton descobriu que quando um bunker ficava cercado e um tanque lançava uma pequena rajada de chamas do lado de fora, o alemães se rendiam em massa, diferentemente dos japoneses.

Lança-chamas M3, peça montada em tanques Sherman e Stuart .
Lança-chamas M9-7, com disparador tradicional



Lança-chamas M9-7, com o disparador tardio.
     Os lança-chamas tiverem algum uso na Guerra da Coréia e foram reformulados para serem utilizados, onde o modelo era o M2A1-2, uma versão melhorada do que usavam na WWII. 
   Durante a Guerra do Vietnã surgiu o modelo M9-7, com várias modificações e ampliação do alcance, mas no começo usavam o M2A1-7, que era uma melhoria do M2A1-2 usado na Coréia.
M202 Flash

M202 Flash
     O M9-7 foi o último modelo de lança-chamas em uso no US Army, pois em 1978 eles foram aposentados e substituídos pelo M202 FLASH, um lançador de foguetes incendiários que você deve ter visto no filme Comando Para Matar, com o velho Arnold. Dessa forma, sabe-se que qualquer uso militar por parte dos EUA de lança-chamas depois 1978 é apelo de Hollywood. Vale ressaltar que a aposentadoria desse tipo de arma se deve mais aos cuidados com a opinião pública sobre os danos causados pelo combustível usado, um tipo de napalm, que adere à pele e queima até se extinguir o combustível, do que realmente uma preocupação com o bem estar do soldado que porta o armamento, sendo esta última a razão oficial para findar a carreira de tal armamento no US Army: preservar os soldados do uso de tão perigoso equipamento. Isso não quer dizer que eles não tenham alguns em inventário... para alguma eventualidade.
     Curiosamente, o Brasil ainda desenvolvia lança-chamas em meados dos anos 80, quando ainda tinha uma indústria de defesa em franco desenvolvimento. A União Soviética usou amplamente lança-chamas durante o conflito do Afeganistão nos anos 80 e até hoje equipa seus tanques com esse dispositivo.

O personagem: Blowtorch

File Name: Hanrahan, Timothy P.
Grade: E-4
Birthplace: Tampa, Florida
Primary Specialty: Infantry Special Weapons
Secondary Specialty: Small-Arms Armorer

Blowtorch é altamente familiarizado com todos os dispositivos incendiários militares e com equipamentos de projeção de chamas. Para Blowtorch o uso do fogo é anterior ao arco e flecha. Expert Qualificado: lança-chamas M-7; família M16; Colt 1911Ai; Beretta 92.

O personagem original é colorido. Um baita de um alvo. 

A versão nacional é levemente mais escura que a estadunidense pela diferença do plástico ABS usado, que contém aditivos para a nossa incidência de UV, diferente do hemisfério norte. A outra diferença é o capacete utilizado: no Brasil usou-se o mesmo molde dos capacetes dos demais comandos em ação dos anos anteriores, enquanto nos EUA havia um capacete próprio com inserções onde se podia encaixar a máscara e que podem ser encaradas como lanternas para capacete, muitos úteis para abrir caminho em meio a fumaça de um campo atingido por chamas. 

A versão dos 25 anos reproduz esses tons. Já a versão POC tem tons mais escuros e opacos, o que o torna mais real, além dos acessórios mais específicos e um fuzil. O machado é o máximo. 

Pensando em tudo isso e vendo como era utilizada a arma durante o Vietnã, optei por  mudar tudo para algo mais urbano, como um uniforme cinza e detalhado em verde acetinado. Isso torna a figura mais próxima ao que realmente deveria ser enquanto um soldado de infantaria, mesmo que portando uma chamada "arma especial". O capacete do Acessory Pack caiu como uma luva, assim como a mochila-tanque. A máscara repintada em preto dá o tem sinistro que alguém que vai torrar seus inimigos deve ter.

      
Lança-chamas -Estrela S.A. 

Blowtorch - Hasbro INC


Blowtorch - Hasbro - 25th Anniversary

Blowtorch - Hasbro - Pursuit of Cobra

Blowtorch - Custom
Blowtorch - Custom

Blowtorch - Custom


Comparação - Tocha (Estrela) à esquerda; Blowtorch, à direita

As três figuras em comparação.

Ref.: The Illustrated Manual of U.S. Portable Flamethrowers, Charles S. Hobson, SCHIFFER PUBLISHING, 2010.