Um Campo de Sangue
Charles Weeler
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no
Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
Tradução de José Marcos Macedo
Será que a chaga à praia de Omaha aconteceu mesmo como Spielberg
descreveu? Tem fundamento a legação de que o diretor contou a história como ela
realmente ocorreu? Em termos gerais, sim. Eu esperava, porém, que um cineasta
na posse de recursos tão vultosos pensasse ser interessante dar algum contexto
a sua história do desembarque, contando-nos não apenas o que aconteceu, mas a
razão. Por que, por exemplo, foi necessário desembarcar tropas naquele exato
ponto da costa?
A resposta, curta e grossa, é que os mentores do Dia D, não tinham
escolha. A praia que foi apelidada de Omaha era a única brecha em 32km de
penhascos que separavam as três praias inglesas e canadenses, a leste, as
segunda praia estadunidense, Utah, no extremo ocidente da área de invasão. Sem
Omaha, a distância entre os dois exércitos aliados teria convidado os alemães a
contra-atacar, o que poderia repelir a invasão e prolongar a guerra na Europa
por mais alguns anos.
A topografia de Omaha era ideal para a defesa. Nos dois extremos, os
penhascos eram quase perpendiculares. Na maré média, um trecho de areia firme conduzia
a uma saliência de seixo pesado, instransponível por veículos, e a um
quebra-mar de 4,5m de altura, crivado de arame farpado. Transpondo o muro,
havia uma estrada calçada, um profundo fosso antitanque, um trecho de pântano e uma subida íngreme até uma rede de
trincheiras, em terreno elevado.
Uma combinação mortal de defesas naturais e artificiais fez de Omaha
um campo de mortandade. O marechal-de-campo Rommel, que planejara a construção
de um Muro Atlântico alemão desde janeiro de 1944, abastecerá Omaha com o maior
número de obstáculos aquáticos de toda a costa da Normandia, a começar por um
labirinto de estacas minadas e obstáculos angulares de aço para atuar como
barreiras aos tanques e veículos de desembarque. Dominando a praia, e
posicionadas para varrer cada centímetro quadrado de baixios, areia e seixos
com fogo cruzado, estavam armas de 88mm e 75mm em casamatas de concreto, 38
barreiras de foguetes, seis poços multicilíndricos de morteiros e não menos que
84 ninhos de metralhadoras.
Quatro desfiladeiros formavam saídas da praia. No Dia D, eles
estavam minados, eriçados de arame farpado e protegidos por 35 casamatas com
soldados de infantaria armados de rifles, granadas e metralhadoras. Atiradores
de elite jaziam escondidos, em intervalos. E havia mais defesas continente
adentro.
No dia, parte do plano falhou e o resto não funcionou. O bombardeio
naval foi muito breve e impreciso para propiciar ajuda significativa. A força
aérea, temendo atingir os veículos de desembarque a meio caminho, lançaram suas
bombas em campos até 8km para o interior, matando vacas em vez de soldados
alemães. O almirante, preocupado em não ancorar seus navios dentro do alcance
da artilharia alemã e ignorando o mar revolto e a falta de proteção contra o
mau tempo, lançou seus veículos de desembarque a 30km da costa, forçando as
tropas a suportar uma travessia inconcebivelmente ingrata e, por si só,
subjugante, até a praia.
Embarcados na escuridão, às 3h, dez carregamentos, cada um com 300
homens, fizeram água e afundaram; 26 armamentos pesados foram direto para o
leito do mar em seus veículos anfíbios, chamados de DUKWs. De 32 tanques
anfíbios designados para uma divisão estadunidense, com ordens de abrir caminho
para a saída da praia, 29 foram a pique. Sua perda aumentaria em centenas o
número de mortos.
À espera dos estadunidenses não estava uma única divisão de segunda
classe, como os mentores esperavam, mas duas. Ignoradas pela inteligência
aliada, novas tropas da frente russa, tendo chegado à costa apenas alguns dias
antes, haviam acabado de realizar exercícios anti-invasão. Quando a primeira
linha de veículos de desembarque atingiu águas rasas, os defensores abriram
fogo, matando inúmeros estadunidenses cruelmente mareados antes mesmo de
poderem desembarcar.
Soldados de infantaria, com até 30kg de equipamentos nas costas,
saltaram em águas profundas e se afogaram. Minutos depois, a praia era uma
mixórdia de veículos de desembarque destroçados, carros de assaltos encalhados
e homens feridos e moribundos. Uma guarnição perdeu 96% de seu efetivo antes de
disparar um único tiro.
As defesas de Omaha eram simplesmente muito fortes para as forças
enviadas contra elas, e muitos daquelas que alcançaram o topo da praia, suas
armas perdidas ou emperradas com areia, amontoaram-se contra o quebra-mar
durante horas, sem líder e em estado de choque. A coisa piorava à medida que
sucessivas ondas de soldados da infantaria eram abatidas.
Dois fatores salvaram o dia. Um par de destróieres aproximou-se o
bastante pra roçar a areia e disparar a queima-roupa nas fortificações alemãs.
E alguns homens valorosos, notando ser impossível bater em retirada,
reagruparam em número suficiente de companheiros para lançar um ataque aos
postos elevados e atacar as posições inimigas pela retaguarda. À tarde, apesar
dos reveses, fora feita uma cabeça-de-ponte.
E aí voltamos para “O Resgate do Soldado Ryan”, cortando a imagem
dos soldados em paz eterna sobre a praia de Omaha para Washington, onde o
General George Marshal, chefe do Estado-Maior do Exercido dos Estado Unidos,
descobriu que três irmãos foram mortos em ação com intervalos de poucos dias,
enquanto um quarto, esperava-se que ainda vivo, James Ryan, está em algum lugar
na Normadia, desembarcando na França por sua divisão aérea. Marshal ordena uma
missão de resgate.
Esse expediente é francamente inacreditável. Pode-se imaginar que
uma mensagem de rádio ao comandante de Ryan – para qualquer unidade a que o
soldado Ryan, se perdido, poderia estar agregado – seria o suficiente. Mas isso
teria acabado com todo romantismo do roteiro.
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