Monday, January 28, 2013

Um Campo de Sangue


Um Campo de Sangue

Charles Weeler
Para o “The Independent on Sunday”
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
Tradução de José Marcos Macedo



Será que a chaga à praia de Omaha aconteceu mesmo como Spielberg descreveu? Tem fundamento a legação de que o diretor contou a história como ela realmente ocorreu? Em termos gerais, sim. Eu esperava, porém, que um cineasta na posse de recursos tão vultosos pensasse ser interessante dar algum contexto a sua história do desembarque, contando-nos não apenas o que aconteceu, mas a razão. Por que, por exemplo, foi necessário desembarcar tropas naquele exato ponto da costa?
A resposta, curta e grossa, é que os mentores do Dia D, não tinham escolha. A praia que foi apelidada de Omaha era a única brecha em 32km de penhascos que separavam as três praias inglesas e canadenses, a leste, as segunda praia estadunidense, Utah, no extremo ocidente da área de invasão. Sem Omaha, a distância entre os dois exércitos aliados teria convidado os alemães a contra-atacar, o que poderia repelir a invasão e prolongar a guerra na Europa por mais alguns anos.
A topografia de Omaha era ideal para a defesa. Nos dois extremos, os penhascos eram quase perpendiculares. Na maré média, um trecho de areia firme conduzia a uma saliência de seixo pesado, instransponível por veículos, e a um quebra-mar de 4,5m de altura, crivado de arame farpado. Transpondo o muro, havia uma estrada calçada, um profundo fosso antitanque,  um trecho de pântano  e uma subida íngreme até uma rede de trincheiras, em terreno elevado.
Uma combinação mortal de defesas naturais e artificiais fez de Omaha um campo de mortandade. O marechal-de-campo Rommel, que planejara a construção de um Muro Atlântico alemão desde janeiro de 1944, abastecerá Omaha com o maior número de obstáculos aquáticos de toda a costa da Normandia, a começar por um labirinto de estacas minadas e obstáculos angulares de aço para atuar como barreiras aos tanques e veículos de desembarque. Dominando a praia, e posicionadas para varrer cada centímetro quadrado de baixios, areia e seixos com fogo cruzado, estavam armas de 88mm e 75mm em casamatas de concreto, 38 barreiras de foguetes, seis poços multicilíndricos de morteiros e não menos que 84 ninhos de metralhadoras.
Quatro desfiladeiros formavam saídas da praia. No Dia D, eles estavam minados, eriçados de arame farpado e protegidos por 35 casamatas com soldados de infantaria armados de rifles, granadas e metralhadoras. Atiradores de elite jaziam escondidos, em intervalos. E havia mais defesas continente adentro.
No dia, parte do plano falhou e o resto não funcionou. O bombardeio naval foi muito breve e impreciso para propiciar ajuda significativa. A força aérea, temendo atingir os veículos de desembarque a meio caminho, lançaram suas bombas em campos até 8km para o interior, matando vacas em vez de soldados alemães. O almirante, preocupado em não ancorar seus navios dentro do alcance da artilharia alemã e ignorando o mar revolto e a falta de proteção contra o mau tempo, lançou seus veículos de desembarque a 30km da costa, forçando as tropas a suportar uma travessia inconcebivelmente ingrata e, por si só, subjugante, até a praia.
Embarcados na escuridão, às 3h, dez carregamentos, cada um com 300 homens, fizeram água e afundaram; 26 armamentos pesados foram direto para o leito do mar em seus veículos anfíbios, chamados de DUKWs. De 32 tanques anfíbios designados para uma divisão estadunidense, com ordens de abrir caminho para a saída da praia, 29 foram a pique. Sua perda aumentaria em centenas o número de mortos.
À espera dos estadunidenses não estava uma única divisão de segunda classe, como os mentores esperavam, mas duas. Ignoradas pela inteligência aliada, novas tropas da frente russa, tendo chegado à costa apenas alguns dias antes, haviam acabado de realizar exercícios anti-invasão. Quando a primeira linha de veículos de desembarque atingiu águas rasas, os defensores abriram fogo, matando inúmeros estadunidenses cruelmente mareados antes mesmo de poderem desembarcar.
Soldados de infantaria, com até 30kg de equipamentos nas costas, saltaram em águas profundas e se afogaram. Minutos depois, a praia era uma mixórdia de veículos de desembarque destroçados, carros de assaltos encalhados e homens feridos e moribundos. Uma guarnição perdeu 96% de seu efetivo antes de disparar um único tiro.
As defesas de Omaha eram simplesmente muito fortes para as forças enviadas contra elas, e muitos daquelas que alcançaram o topo da praia, suas armas perdidas ou emperradas com areia, amontoaram-se contra o quebra-mar durante horas, sem líder e em estado de choque. A coisa piorava à medida que sucessivas ondas de soldados da infantaria eram abatidas.
Dois fatores salvaram o dia. Um par de destróieres aproximou-se o bastante pra roçar a areia e disparar a queima-roupa nas fortificações alemãs. E alguns homens valorosos, notando ser impossível bater em retirada, reagruparam em número suficiente de companheiros para lançar um ataque aos postos elevados e atacar as posições inimigas pela retaguarda. À tarde, apesar dos reveses, fora feita uma cabeça-de-ponte.
E aí voltamos para “O Resgate do Soldado Ryan”, cortando a imagem dos soldados em paz eterna sobre a praia de Omaha para Washington, onde o General George Marshal, chefe do Estado-Maior do Exercido dos Estado Unidos, descobriu que três irmãos foram mortos em ação com intervalos de poucos dias, enquanto um quarto, esperava-se que ainda vivo, James Ryan, está em algum lugar na Normadia, desembarcando na França por sua divisão aérea. Marshal ordena uma missão de resgate.
Esse expediente é francamente inacreditável. Pode-se imaginar que uma mensagem de rádio ao comandante de Ryan – para qualquer unidade a que o soldado Ryan, se perdido, poderia estar agregado – seria o suficiente. Mas isso teria acabado com todo romantismo do roteiro.

No comments: