Tuesday, January 29, 2013

A Lógica Invertida de Spielberg


A Lógica Invertida de Spielberg

Louis Menand
Especial para o “NYR of Books”
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
Louis Menand é professor da Universidade de Nova York
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves






            “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, é a história de oito soldados estadunidenses que, depois de sobreviver ao desembarque no Dia D na praia de Omaha, recebem ordem para encontrar um soldado, Ryan, que saltou de pára-quedas durante a invasão e está perdido na Normandia.
            Ryan é o caçula de quatro irmãos; os outros três morreram em combate. O Exército quer descobrir se o rapaz está vivo e, se estiver, levá-lo de volta para a sua mãe. A patrulha de resgate se mete em situações complicadas, mas encontra o homem e, apesar de sofrer terríveis baixas, consegue matar alguns alemães pelo caminho.
            Não há nada incomum nessa história. É, talvez, a trama mais simples e verdadeira que o homem conhece: salvar uma vida. É um enredo que garante derreter os mais empedernidos: a garotinha retirada viva do poço, a libertação de reféns, a absolvição do inocente no último instante. É Cristo ressurgindo dos mortos. Na há público que resista. Pode-se sair do cinema revoltado com o descaramento da coisa, mas é impossível se livrar do nó na garganta.
            Existe  quase um consenso de que “O Resgate do Soldado Ryan” não é um filme convencional. Tem sido considerado uma espécie  de inovação entre os filmes de guerra, tão diferente de realizações que já foram elogiadas pelo seu realismo – como “Platoon”, de Oliver Stone, e “Gallipoli”, de Peter Weir – , que esses filmes nem mesmo são citados como pontos de comparação.
As pessoas concordam que a história é um pouco inverossímil, mas afirmam que o tratamento dado por Spielberg não é inverossímil. Dizem que ele nos mostra, como se fosse a primeira vez, a guerra sem pieguice ou exageros patrióticos, que substitui a violência dos efeitos especiais exagerados por uma imagem verídica do horror e da desumanidade da violência organizada. Essa opinião baseia-se principalmente em duas cenas, uma logo no início do filme e outra perto do final. “O Resgate do Soldado Ryan” começa com uma tomada da bandeira estadunidense, seguida de uma cena curta, passada na atualidade, em que vemos um veterano visitando um cemitério militar na Normandia.
Então, com um corte que sugere estarmos dentro dos pensamentos desse homem, retrocedemos no tempo para o Dia D e uma reencenação de 20 minuto do desembarque  na praia de Omaha. Isso introduz à história do Soldado Ryan, cujo clímax é outra cena de 20 minutos de combate entre soldados estadunidenses e uma unidade de tanques alemães. Depois voltamos ao presente e ao nosso veterano, cuja identidade, agora, conhecemos. Chorando, ele faz continência para uma lápide. Repete-se a imagem da bandeira estadunidense.
As cenas de batalhas, como todos concordam, são virtuosismo cinematográfico. A segunda é um tanto sobrecarregada de incidentes: os personagens já estão totalmente desenvolvidos, por isso não podem ser mortos com demasiada casualidade. Mas a primeira seqüência, na praia de Omaha, não conhecemos os personagens, e a casualidade, o caráter aleatório, da violência é precisamente o que a torna terrível. Enquanto as balas atingem a areia ao seu redor, um homem procura numa pilha de corpos o seu braço decepado, encontra-o e vai embora; um soldado tira o capacete depois de escapar de uma refrega, mas no instante seguinte um tiro lhe arranca o topo do crânio. Em “O Resgate do Soldado Ryan” não vemos homens que simplesmente morrem; os vemos sangrar até a morte, gritando por suas mães, com intestinos espalhados sobre a areia.
Nisso Spielberg é um verdadeiro mago. Suas imagens tem uma rara nitidez visual e aural, quase uma hiperclareza – são iguais à vida, com iluminação melhor. As imagens nunca representam a confusão sendo confusas, e, mesmo quando o ruído é quase ensurdecedor, como nas cenas de batalha em “Soldado Ryan”, os sons que o compõe são identificáveis.
O desembarque na praia de Omaha lembra o afogamentos do africanos em “Amistad” ou a destruição do gueto em “A Lista de Schindler”. Dá-nos a sensação de estar presenciando algo que não deveríamos, algo assombroso e indelével. Mas não representa a transcendência dos efeitos dos efeitos especiais. Representa sua consumação. É o triunfo da técnica. Isso não pretende reduzir a obra, e sim lhe dar a devida proporção. Spielberg quis atingir um grau de realismo excepcional em ^Soldado Ryan” e conseguiu por meio de elaborados efeitos especiais (que outra coisa poderia usar?).
Mas a serviço de que ideia?  O que o filme nos diz sobre a guerra? Que é hedionda. E também que é nobre e necessária. A opinião geral de que “Soldado Ryan” transmite repulsa pela guerra porque contém imagens revoltantes me parece inverter a lógica do filme. Sempre pensei que o que torna a guerra repulsiva não é a possibilidade de ser ferido ou morto; é a possibilidade de ferir ou matar outra pessoa. A guerra é excepcionalmente terrível não porque destrói seres humanos, que podem ser destruídos aos montes de outras maneiras, mas porque transforma os seres humanos em destruidores.
Há várias mortes revoltantes em “Soldado Ryan”, mas são todas elas mortes estadunidenses. Quando os alemães são atingidos, caem como pinos de boliche e não levantam. As mortes deles são mortes de cinema. E, quanto mais agônico é o sofrimento dos estadunidenses, mais nos alegramos ao ver a chacina dos alemães. O realismo apenas intensifica o entusiasmo.
Duvido que fosse a intenção de Spielberg, e a disjunção entre o objetivo e o resultado revela o maior problema do tipo de filme que ele deseja fazer hoje. Ele quer que o público vivencie, quando está habituado meramente a reagir. Ele quer dar o seu testemunho numa mídia feita para diversão da massa. A incongruência sobressai na diferença entre a reação da maioria dos críticos a “O Resgate do Soldado Ryan” e a reação dos expectadores pagantes. Os críticos costumam assistir a filmes em salas especiais. É como assisti-los numa igreja. Todos estão concentrados; ninguém se levanta para comprar pipoca ou procura balas na bolsa. O público dessas salas não reage ao filme.
Mas o dos cinemas sim. Vi “Soldado Ryan” numa grande sala no centro de Manhattan, num sábado à noite, um dia depois da estréia, com cerca de 200 pessoas. Não eram espectadores desavisados, em busca de emoções baratas. Haviam lido críticas, estavam preparados para serem influenciados.
Na metade do filme há uma cena em que um membro especialmente simpático da patrulha de resgate (na verdade são todos simpáticos) se esvai em sangue, com evidente sofrimento, durante o ataque a um ninho de metralhadora alemão, perdido num campo francês. Depois que o soldado morre, seus companheiros correm até a posição inimiga e espancam o único sobrevivente alemão, que tenta freneticamente se render. Um tímido interprete que acompanha a patrulha e nunca havia visto um combate se opõe histericamente àquela brutalidade. “O que é isso?”, ele grita aos companheiros estadunidenses enquanto o apavorado alemão choraminga. “Isso se chama guerra”, disse o homem sentado à minha direita (que antes estivera chorando) para ninguém especial. Mais adiante o interprete se vê confrontado com a possibilidade de matar um soldado alemão. “Mate-o”, gritou uma mulher na platéia à minha frente, expressando claramente o sentimento de toda a casa.
Isso não significa que “Soldado Ryan” seja pior que a maioria dos filmes de guerra de Hollywood, em que os heróis matam os bandidos, sob nosso aplauso, e morrem por causas justas, para nosso pesar. Significa apenas que, nesse sentido, “Soldado Ryan” em nada difere da maioria dos filmes de guerra de Hollywood. Os heróis de Spielberg, liderados por Tom Hanks, são mais palpáveis e suas mortes são, por assim dizer, mais verídicas.
Mas, apesar de sua maneira naturalista, são quase exagerados quando o coronel de Robert Duvalll em “Apocaliypse Now” que voa para a batalha escutando “A Cavalgada das Valquírias’ e exprime seu desprezo pelo inimigo com a fala – uma das mais cinematográficas de todos os tempos – “Charlie don’t surf”. Não há menos ambigüidade em “O Resgate do Soldado Ryan” do que havia em “O Mais Longo do Dias”.
Para ser justo, os cineastas realmente se esforçam. A história do soldado Ryan pretende levantar a questão ética: está certo arriscar oito vidas para salvar uma? A patrulha discute essa questão até certo ponto. Mas quão complexa ela pode ser? Se os soldados não lutarem pela “mãe”, lutarão por quê? Nenhum dos homens realmente acredita que sua missão seja fútil, e o roteiro não seria verossímil se deixasse dúvida nesse sentido. Quando não estão falando da guerra, eles conversam sobre suas famílias e suas mães – que, obviamente, é a forma pela qual compreendem a importância maior de sua missão. Lutar para devolver o único filho que resta a uma mãe atormentada é mil vezes mais concreto do que lutar para libertar a França e 10 mil vezes mais favorável à emoção cinematográfica.
Se os soldados conseguirem libertar alguns franceses durante a missão, tanto melhor. Mas o que significa a França para eles ( e para nós, nessa caso?). O que a França é para uma mãe?
Havia maneiras de fazer a história do soldado Ryan ter algum peso moral plausível. Uma seria ter feito de Ryan, quando finalmente é encontrado, um personagem de proporções menos admiráveis. Nesse filme, evidentemente, ele é tão inocente e nobre que recusa a oferta de voltar para casa; comovido pela notícia sobre seus irmãos, decide ficar e enfrentar a morte ao lado dos camaradas. É esse tipo de filme. A possibilidade de que Ryan pudesse ser um objeto indigno de coragem e sacrifício nunca foi cogitada, é claro.
A outra opção seria fazer da missão um produto de corrupção de calculismo – colocar os soldados na condição de ter de fazer a coisa certa pelo motivo errado, fazê-los sofrer e morrer para algum general vaidoso ou ambicioso burocrata no quartel-general subisse na carreira. Essa possibilidade é tão óbvia que os realizadores de “Soldado Ryan” parecem ter feito questão de recusá-la.
O conflito entre soldados e oficiais é uma constante nas histórias de guerra, assim como o conflito entre delegados e detetives é uma constante nas histórias policiais. A coragem das pessoas na linha de gente é realçada pelo egoísmo e incompetência das pessoas que os comandam. A dramatização desse conflito é perfeitamente compatível com certo estilo de patriotismo – é a única premissa nos filmes de Rambo. Quando Tom Hanks, no início do filme, re refere à missão como um exercício de relações públicas, está demonstrando o exato grau de cinismo que se espera de um duro e honrado capitão do Exército. Mas não passa disso, nem o poderia sem prejudicar a força de seu personagem. Porque já sabemos que surgiu a idéia da missão e que não envolvia qualquer cinismo.
Essa parte do filme me parece superar Capra. Uma funcionária pública em Washington, chefe da equipe que datilografa cartas para as famílias anunciando a morte de seus entes queridos na guerra, percebe que havia enviado três cartas para a mesma Sra. Ryan (que, é claro, mora em uma fazenda em Iowa). A supervisora civil informa seu superior de uniforme, que informa seu superior de uniforme (e sabemos que não se trata de um burocrata porque lhe falta um braço), e ambos avisam ao chefe do Estado –Maior do Exército, General George C. Marshal em pessoa, com a respeitosa recomendação de que o sobrevivente do jovens Ryan seja localizado e removido do combate.
O general concorda. Um assessor começa a resmungar que “não se pode parar uma guerra por causa de um soldado” e assim por diante, mas o grande homem ergue a mão. Vai até sua mesa, pega uma carta que por acaso acabara de enfiar num livro e começa a ler. É uma carta grave e comovente para uma mulher cujos cinco filhos morreram em combate. No meio da leitura, Marshal pousa a carta e recita de cor  as frases finais e diz o nome do signatário: Abraham Lincoln. E assim, engolimos um grande, um enorme anzol.
A Segunda Guerra Mundial foi a luta contra um mal que não precisamos pintar em tons de cinza, mesmo que se deseje retratar individualmente combatentes inimigos, e os estadunidenses que nela morreram merecem nossa reverência. Mas aqui não estamos julgando a Segunda Guerra Mundial; estamos julgando um filme. Desde que Spielberg optou pela seriedade, em “A Lista de Schindler”, ele vem trabalhando numa espécie de terra de ninguém entre o entretenimento e a arte.
Os grandes espetáculos de Hollywood sobre temos históricos quase sempre foram manipuladores e não demonstram muito embaraço a esse respeito. Os cineastas procuram instigar o público porque o público quer ser instigado. Ele quer torcer, chorar e comprar pipoca. O sentimentalismo é um pressuposto dessa experiência e, embora detalhes omitidos e os clímax forjados possam ser de uma desonestidade irritante, na verdade são a manifestação de uma honestidade mais profunda.
Lembram-nos que estamos sendo iludidos porque fomos buscar distração; portanto não estamos sendo enganados. E, não raro, apesar da ilusão e da pieguice, brota desses filmes algum tipo de verdade, mesmo que seja a que vislumbra de tanto ver nossa realidade falsificada. Mas essa verdade nunca é um sentimento moral explícito. Esse sentimento é mera adulação: o que as platéias querem ser levadas a pensar é o que já pensam. Ninguém veio em busca de polêmica.
Uma ambição da arte é fazer as pessoas pensarem o que não pensavam, ou o que já pensavam sem realmente se dar conta, e o grande problema de Spielberg como cineasta é que ele jamais permite que seu público pense. Só permite que ele sinta. Parece insistir que é o único entre todos os diretores de Hollywood que faz justiça a seus temas, mas que não pode simplesmente os apresentar de graça.
Ele exige nossa constante cumplicidade emocional em troca de sua fidelidade. Parece acreditar que, caso deixe o anzol escapar por um segundo de nossas bocas, teremos a idéia errada sobre os nazistas ou a escravidão. Ele não deixa nada ao acaso. Põe música por trás de tudo. Se conseguisse respeitar um pouco menos seus temas ou um pouco mais seu público, faria filmes melhores.

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