A Materialidade do Medo
Mario Vitor
Santos
Publicado no Jornal “Folha de São Paulo” no
Caderno Mais! Em 11 de outubro de 1998
No início e no fim de “O Resgate do Soldado Ryan”, o ex-combatente
James Ryan (Matt Damon) visita, nos dias atuais, o túmulo do Capitão Miller
(Tom Hanks), comandante morto na missão que dá título ao filme. À distância,
intrigada, a família – mulher, filhos, netos – parece incapaz de entender o
choro compulsivo, incontrolável de Ryan.
A cinde a tela: de um lado, os Estados Unidos, passivo, infantil e
parvo, que nunca foi bombardeado ou invadido, a opinião pública que decide e dá
apoio às ações estadunidenses no exterior. Do outro, os Estados Unidos que
sobrevivei à Segunda Guerra Mundial, ainda em choque diante dos horrores
daquele conflito, traumaticamente transformado por ele, como a Europa. Dois
mundos que não se comunicam...
Parte da crítica internacional recebeu o filme com reservas,
alegando que ele passa uma ideia arrogante, historicamente incorreta, de que só
os estadunidenses entraram na campanha. É questionável, porém, se seria correto
continuar classificando de “estadunidenses”, no sentido estrito, os soldados
que entraram no corpo-a-corpo da guerra na Europa, da África e do Pacífico.
Os Estados Unidos inocente saudou o “Resgate”. Spielberg recebeu do
Exército a mais alta medalha militar que um civil pode merecer. Apesar disso, o
filme, especialmente em sua primeira hora, rompe o cordão sanitário criado em
torno da guerra pelos oficiais de relações públicas do comando estadunidense.
São raras as descrições da Segunda Guerra que guardam a mínima
correspondência com a crueza de um combate. O “Resgate” é dos poucos filmes a
tratar do assunto com realismo, conferindo ao medo uma materialidade extrema. É
uma obra dos sentidos, da visão, da audição (ou da surdez) e até do tato e do
olfato.
O filme trafega da monumentalidade do horror, nas sequências das
pilhas de corpos e partes de corpos no desembarque da Normandia, ao tédio e
ignorância dos soldados, sua solidão e privações e a falta de sentido de suas
ações.
No “front interno”, durante e depois da guerra, sua experiência era
contada de maneira sistematicamente falsa e adocicada, para sempre deformada
pela publicidade otimista.
Naquele que talvez seja o melhor livro já escrito sobre o assunto,
“Wartime – Understanding na Behavior in the Second World War” (Tempo de Guerra
– Entendimento e Comportamento na Segunda Guerra Mundial, Oxford University
Press), o escritor e ex-tenente estadunidense Paul Fussel, participante do
ataque na Normandia, trata da inocência em que o público era mantido em relação
aos danos bizarros que a guerra causa aos corpos dos soldados.
Esperava-se que o corpo humano fosse atingido por balas e bombas,
mas o alheamento era tal, lembra Fussel, que não se concebia que s soldados
pudessem ser feridos, algumas vezes mortos, ao sofrerem o impacto violento de
partes dos corpos de seus amigos retalhados por uma explosão.
Na era do eufemismo, as tropas aliadas raramente eram mostradas como
vítimas de amputações traumáticas, apesar de os formulários individuais dos
combatentes trazerem, junto aos dados como nome, idade e endereço, o espaço
destinado a informar “membros perdidos’.
Nos combates, como nos acidentes aéreos, a visão das entranhas é muito
mais familiar do que se imagina, ou se imaginava, antes da primeira hora do
filme de Spielberg. Depois de edulcorar a Segunda Guerra por mais de cinco
décadas, Hollywood afinal consegue encarar a verdade.
Truques de publicidade como os que adocicam a realidade dos conflito
poderiam ter se repetido na Guerra do Vietnã caso a televisão e um jornalismo
destemido e livre da censura não existissem.
O filme é atual porque as guerras recentes tentam retornar algumas
teses da Segunda Guerra Mundial. Na Guerra do Golfo (aprofundando algo que já
havia sido ensaiado na invasão do Panamá), o Estado-Maior estadunidense e
“aliado” logrou reassumir o controle perdido das informações no Vietnã.
O comando restringiu o acesso dos jornalistas ao conflito, bloqueou
imagens realistas, difundiu de novo a noção, comum no início da Segunda Guerra,
de que os ataques de “bombas inteligentes” podem produzir impactos precisos,
que aniquilam exclusivamente soldados inimigos, mantendo os próprios soldados a
distância segura de qualquer perigo.
Apesar de suas referências e cunho patriótico, “O Resgate do Soldado
Ryan” anima futuros objetores de consciência. Talvez o Exército estadunidense
tenha se precipitado em dar uma medalha ao diretor hollywoodiano.
De acordo com Paul Fussel, os Estados Unidos até hoje não entendeu
como foi a Segunda Guerra Mundial e por isso tem sido incapaz de usar esse
entendimento para reinterpretar e redefinir a realidade nacional e assim chegar
a alguma coisa próxima do que seja a maturidade pública.
Nas cenas do cemitério, o ex-soldado Ryan pode estar chorando pelo
que passou na guerra, pelo sacrifício dos homens que o salvaram, mas talvez
chore também por saber que, daquele inicático encontro dos EUA com a dor, da
solidão daí decorrente, ele jamais será resgatado.
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